Quinta-feira, 02.02.17

Democracia :    seus  limites  e   defesa  necessária.

                                             Daniel Oliveira no Expresso diário de 01.02.2017:
..(...)


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

---  Como chegou Hitler ao poder?  (ou:  do desemprego, medo, manipulação,... à ditadura)

 
----- Próxima etapa nos EUA ?  , na Europa e ... ?!        (-via J.Lopes, Entre as brumas...)
  ('ºF451'/ regime de 'fogo')


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Quarta-feira, 16.03.16

A Conspiração de Timor      (-John Pielger*, jornalista australiano, 11.Mar.2016 )

«Documentos secretos encontrados nos Arquivos Nacionais Australianos fornecem um relance sobre como foi executado e encoberto um dos maiores crimes do séc. XX. Ajuda-nos também a compreender como e a favor de quem o mundo funciona.
     Os documentos referem-se a Timor oriental, agora conhecido como Timor-Leste, e foram escritos por diplomatas da embaixada da Austrália em Jakarta.  A data é novembro de 1976, menos de um ano após o ditador indonésio general Suharto tomar a então colónia portuguesa na ilha de Timor.   O terror que se seguiu tem poucos paralelos: nem mesmo Pol Pot conseguiu matar proporcionalmente tantos cambodjanos como Suharto e os seus amigos generais mataram em Timor oriental. De uma população de quase um milhão, um terço desapareceu».

   Foi o segundo holocausto do qual Suharto foi responsável. Uma década antes, em 1965, Suharto tomou o poder na Indonésia com um banho de sangue que eliminou mais de um milhão de vidas. A CIA referiu: «Em termos de número de mortos, os massacres estão entre os piores assassínios em massa do séc. XX.»

     Este acontecimento foi saudado na imprensa ocidental como “um raio de luz na Ásia” (Time). O correspondente da BBC no sueste asiático, Roland Challis, descreveu mais tarde o encobrimento dos massacres como um triunfo da cumplicidade e silêncio dos media, A “linha oficial” era que Suharto tinha “salvo” a Indonésia de um assalto comunista.

    «Evidentemente que as minhas fontes britânicas sabiam qual o plano americano,” disse-me. “Havia corpos retirados dos relvados do consulado britânico em Surabaya e navios de guerra britânicos escoltaram um barco cheio de tropas indonésias para tomarem parte neste holocausto terrível. Só muito mais tarde soubemos que a embaixada americana estava a fornecer nomes [a Suharto] e a abatê-los na lista à medida que eram eliminados. Houve um acordo. Do estabelecimento do regime de Suharto fazia parte o envolvimento do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial [ dominados pelos EUA]. Foi esse o acordo.»

      Entrevistei muitos dos sobreviventes de 1965, incluindo o aclamado escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer, que testemunhou um sofrimento épico «esquecido» no ocidente só porque Suharto era «o nosso homem». Era quase inevitável um segundo holocausto em Timor oriental, rico em recursos e colónia indefesa.

    Em 1994, filmei clandestinamente em Timor oriental. Encontrei uma terra de cruzes e inesquecível sofrimento. No meu filme, «Morte de um Povo», há uma sequência filmada a bordo de um avião australiano voando sobre o mar de Timor. Decorre uma reunião. Dois homens de fato fazem saúdes com champanhe. «É um momento verdadeiramente histórico,» balbucia um deles, «verdadeira e unicamente histórico.»

     É o ministro dos Estrangeiros da Austrália, Gareth Evans. O outro é Ali Alatas, o principal porta-voz de Suharto. Estamos em 1989 e estão fazendo um voo simbólico para celebrar um acordo de pirataria a que chamam «tratado». Foi isto que permitiu à Austrália, à ditadura de Suharto e às companhias petrolíferas internacionais dividirem os despojos dos recursos em petróleo e gás de Timor Leste.

    Graças a Evans, ao então primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating – que encarava Suharto como uma figura paternal – e a um gang que conduzia a política externa da Austrália, este país distinguiu-se como o único país ocidental a reconhecer formalmente a conquista genocida de Suharto. O preço, disse Evans, foram «montanhas» de dólares.

    Membros deste gang voltaram a aparecer há dias em documentos encontrados nos Arquivos Nacionais por dois investigadores da Universidade de Monash em Melbourne, Sara Niner e Kim McGrath. Funcionários superiores do Departamento de Negócios Estrangeiros relatam pela sua própria mão violações, tortura e execuções de timorenses de leste por tropas indonésias. Em anotações rabiscadas num apontamento que refere atrocidades num campo de concentração, um diplomata escreveu: «parece divertido». Outro escreveu: «a população parece extasiada.»

Relativamente a um relatório da resistência indonésia Fretilin que descreve a Indonésia como um invasor «impotente», outro diplomata zombava: «Se o inimigo era ”impotente”, conforme lá está dito, como é que conseguem violar todos os dias a população capturada? Ou será que se deve a isto?»

     Os documentos, diz Sarah Niner, são «prova evidente da falta de empatia e de preocupação pelos abusos de direitos humanos em Timor-Leste» no Departamento de Negócios Estrangeiros. «Os arquivos mostram que esta cultura de encobrimento está intimamente ligada à necessidade de o DNE reconhecer a soberania indonésia, para iniciar as negociações sobre o petróleo no mar de Timor-Leste.»

     Tratou-se de uma conspiração para roubar o petróleo e o gás de Timor-Leste. Em telegramas diplomáticos divulgados de agosto de 1975, o embaixador australiano em Jakarta, Richard Woolcott, escreveu para Canberra: «Parece-me que o Departamento [de Minerais e Energia] poderia ter interesse em resolver a atual diferença na fronteira marítima acordada e isso poderia ser muito melhor negociado com a Indonésia… do que com Portugal ou com o Timor português independente.» Wolcott revelou que tinha sido informado sobre os planos secretos da Indonésia para uma invasão. Telegrafou para Canberra que o governo devia “ajudar à aceitação pública na Austrália” e contrariar «o criticismo contra a Indonésia».

    Em 1993, entrevistei C. Philip Liechty, um antigo funcionário de operações senior da CIA na embaixada de Jakarta durante a invasão de Timor-Leste. Disse-me ele: «Foi dada luz verde a Suharto [pelos EUA] para fazer o que fez. Fornecemos-lhe tudo o que precisava [desde] espingardas M16 [até] apoio logístico militar dos EUA… talvez 200 mil pessoas morreram, a maior parte não-combatentes. Quando as atrocidades começaram a surgir nos relatórios da CIA, a maneira que arranjaram de tratar do assunto foi encobri-las o máximo tempo possível e quando já não podiam mais ser encobertas foram apresentadas de forma atenuada e em termos gerais, de modo que as nossas próprias fontes foram sabotadas.»       Perguntei a Liechty o que teria acontecido se alguém tivesse denunciado. «A sua carreira teria terminado,» respondeu. Disse-me que esta entrevista comigo era uma forma de reparação pelo «mal que senti».

    O gang da embaixada australiana em Jakarta parece não sentir tal angústia. Um dos escribas dos documentos, Cavan Hogue, declarou ao Sydney Morning Herald:   «Parece a minha caligrafia. Se fiz tal comentário, sendo eu o cínico filho-da-mãe que sou, teria certamente sido com espírito de ironia e sarcasmo. Isso referia-se ao comunicado de imprensa [da Fretilin] e não aos timorenses.» Hogue declarou que houve «atrocidades de todos os lados».

    Como pessoa que relatou e filmou as provas do genocídio, acho esta última observação especialmente profana. A «propaganda» da Fretilin que ele ridiculariza era rigorosa. O relatório subsequente das Nações Unidas sobre Timor Leste descreve milhares de casos de execução sumária e violência contra mulheres pelas forças especiais Kopassus de Suharto, muitas delas treinadas na Austrália. «Violação, escravatura sexual e violência sexual foram instrumentos usados como parte da campanha programada para infligir uma profunda experiência de terror, impotência e desespero nos apoiantes pró-independência,» diz a ONU.

   Cavan Hogue, o brincalhão e «cínico filho-da-mãe» foi promovido a embaixador senior e mais tarde reformado com generosa pensão. Richard Woolcott foi promovido a chefe do Departamento dos Negócios Estrangeiros em Canberra e, na reforma, ensinou como um «respeitado intelectual diplomata».

    Foram despejados jornalistas na embaixada australiana em Jakarta, especialmente empregados do (magnata das TVs e jornais) Rupert Murdoch, que controla quase 70% da imprensa da capital. O correspondente de Murdoch na Indonésia era Patrick Walters, que noticiou como «impressionantes» os «êxitos económicos» de Jakarta em Timor-Leste e «generoso» o desenvolvimento daquele território empapado de sangue. Quanto à resistência timorense oriental, estava «sem líder» e derrotada. De qualquer modo, «ninguém é agora preso sem os procedimentos legais apropriados».

    Em dezembro de 1993, um dos empregados mais antigos de Murdoch, Paul Kelly, na altura editor-chefe do The Australian, foi nomeado pelo ministro dos Estrangeiros Evans para o Instituto Austrália-Indonésia, uma instituição fundada pelo governo australiano para a promoção dos «interesses comuns» de Canberra e da ditadura de Suharto. Kelly levou um grupo de editores de imprensa a Jakarta para uma audiência com o assassino de massas. Há uma fotografia de um deles que se está curvando.

     Timor-Leste ganhou a independência em 1999 com o sangue e a coragem da sua gente vulgar. A pequena e frágil democracia foi imediatamente sujeita a uma implacável campanha de assédio pelo governo australiano, que procurou manobrar para lhe retirar o direito legal de propriedade sobre a exploração das reservas submarinas de petróleo e gás. Para o atingir, a Austrália recusou reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar e alterou unilateralmente a fronteira marítima a seu favor.

      Em 2006, foi finalmente assinado um acordo do tipo mafioso, em grande parte segundo os termos da Austrália. Pouco depois, o primeiro-ministro Mari Alkitiri, um nacionalista que tinha feito frente a Canberra, foi efetivamente deposto naquilo que ele chamou uma «tentativa de golpe» por «estrangeiros». Os militares australianos, que tinham tropas de «manutenção de paz» em Timor Leste, tinham treinado os oposicionistas.

    Nos 17 anos desde que Timor-Leste ganhou a independência, o governo australiano apropriou-se de cerca de 5 mil milhões de dólares em petróleo e gás, dinheiro que pertence ao seu pobre vizinho.

      A Austrália tem sido chamada o «vice-xerife» da América no Pacífico Sul. Um dos homens com crachá é Gareth Evans, o ministro dos Estrangeiros filmado a erguer a taça de champanhe para saudar o roubo dos recursos naturais de Timor-Leste. Hoje, Evans é um frequentador de púlpitos fanático que promove uma marca belicista conhecida por «RTP» ou «Responsabilidade para Proteger». Como co-presidente de um tal «Global Centre» sediado em Nova Iorque, dirige um grupo de influência apoiado pelos EUA que pressiona a «comunidade internacional» para atacar países onde «o Conselho de Segurança rejeita ou não aceita propostas de solução em tempo razoável». O homem indicado, conforme os timorenses podem confirmar.

* Texto publicado em: http://johnpilger.com/articles/the-rape-of-east-timor-sounds-like-fun-

«it is not enough for journalists to see themselves as mere messengers without understanding the hidden agendas of the message and myths that surround it.»- John Pilger.  "Não é suficiente para jornalistas verem-se como meros mensageiros, sem compreenderem os objectivos escondidos da mensagem e os mitos que a envolvem."



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Segunda-feira, 27.04.15

Recordar a Arménia, no centenário do início do genocídio  (-J.Lopes, 24/4/2015, Entre as brumas)

     Do primeiro genocídio do século XX (muitos outros ocorreram antes e depois, para vergonha da humanidade), resultou quase um milhão e meio de mortos, deportações e milhares e milhares de fugitivos. Na noite de 24 de Abril de 1915, (por militares e milícias turcas) foram detidas e deportadas para a parte leste do país/império mais de 200 personalidades («políticos» e «intelectuais»), acontecimento que passou a ser simbolicamente considerado como o início do massacre (e deportação para os desertos da Síria e do Iraque).
    O processo foi aqui diferente do adoptado mais tarde pelos nazis (no holocausto), já que a limpeza étnica não se baseou em teorias sobre raças (mas, principalmente, na diferença de língua e religião, cristã). Por exemplo, dezenas de milhares de mulheres e crianças foram raptadas  e adoptadas por famílias (turcas) muçulmanas e depois convertidas (ao islão). (A maioria dos homens e rapazes que não conseguiram fugir foram fuzilados, enforcados ou passados pela espada*, enquanto as raparigas e mulheres foram forçadas a caminhar centenas de kms, esfomeadas, maltratadas, violadas, vendidas, casadas com desconhecidos... Os seus bens foram roubados ou destruídos, incluindo igrejas e bibliotecas).
     Famílias inteiras fugiram (as que puderam), dispersando-se primeiro pelas terras/países mais próximos e depois um pouco por todo o mundo (França, R.U., URSS, EUA, ...). O país/povo tem ainda hoje uma vastíssima diáspora (os descendentes dos "restos da espada"* que conseguiram fugir) que sonha, maioritariamente, em regressar a casa e reconstruir a «Grande Arménia». 
Registo um caso particular com que lidei quando passei uns dias nessas magníficas e sofridas paragens:  a guia que acompanhou o grupo em que me integrei, muito jovem, era iraniana / arménia e os avós escaparam por um fio ao Genocídio.    Fugiram com a família, andaram pela Rússia e acabaram por se instalar no Irão. Multiplicaram e os descendentes por lá se mantêm, sonhando com a possibilidade de regressarem à terra dos antepassados, que querem ajudar a reconstruir. Não é fácil para todos, mas foi o que esta neta já fez:  guia e intérprete de espanhol em Teerão, foi deixando de ter trabalho por diminuição de visitantes àquelas paragens (por razões óbvias) e aproveitou o movimento inverso de desenvolvimento do turismo na Arménia. Uma irmã já se lhe juntou e espera que mais possam «regressar» a uma espécie de terra prometida – é assim que a sentem.
     Charles Aznavour, nascido em França mas filho de emigrantes arménios, verdadeiro herói nacional, canta em honra dos que «caíram» nesta terrível fase histórica de barbárie:

P.S. – A foto que está a meio do post é do monumento comemorativo do 50º aniversário do Genocídio, que vi em Echmiazin (na Rep. da Arménia).
--- Na Rep. da Turquia ainda hoje é tabu cultural e crime falar/lembrar o genocídio exercido em 1915 sobre os arménios, concidadãos de 2ª classe do império turco otomano; também nos países muçulmanos, bem/mal como nos aliados da NATO (incluindo Portugal), as autoridades se coibem de falar desse expiatório e execrável crime colectivo e de estado
--- O genocídio foi despoletado por uma pesada e humilhante derrota dos otomanos em batalha contra os russos, sendo alguns arménios acusados de deserção e passagem para o lado inimigo, 'culpa' que rapidamente foi alargada a todos os soldados arménios nas fileiras otomanas e a toda a comunidade arménia (e cristã), tornada 'bode expiatório' das suas frustações e perdas militares (devido à impreparação do império e inépcia dos comandantess e governantes) ...
--- Após a derrota (e dissolução) do Império Otomano na 1ªGG, foi criada a República da Arménia integrada na URSS, sendo hoje um país independente que compreende uma parte (a leste da Turquia e 'berço') do que era a "Grande Arménia", que estava sob domínio do grande mas enfraquecido império turco otomano
--- Para Portugal, na 2ªGG, veio Calouste Sarkis Gulbenkian (arménio exilado em França e Inglaterra, o eng."sr.5%" dos contratos de exploração petrolífera negociados por ele em representação do Império Otomano junto das companhias inglesas, francesas, americanas,...), cuja fundação tem um serviço dedicado à cultura Arménia e apoio às comunidades arménias, estejam elas na Rep. Arménia, na Turquia, na Síria, etc.
--------- Sobre a Arménia, suas gentes e cultura ver também o filme ARtMENIANS, passado na RTP, e comentários e posts de H.Araújo.


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Sábado, 11.04.15

O Tempo dos Ciganos - ... romenos de Lisboa   (-A.Santos, 6/4/2015, M74)

   Maria mora numa parte de Lisboa que poucos lisboetas sabem que existe. Todos os dias, no seu caminho para casa, atravessa a estação de Sete-rios carregada de pesados garrafões de água. Os seus olhos, verdes de um verde profundo, perscrutam cada uma das pessoas à espera do comboio, que a observam, com muito desprezo, um pouco de medo e a mala bem segura. Maria veste uma saia comprida, muito suja, várias camadas de camisolas e umas sandálias de plástico. E apesar da roupa andrajosa, é uma mulher bonita, na casa dos trinta.
     Depois, deixa-se o passeio, cruza-se a via rápida, salta-se o rail de protecção, passa-se por baixo de dois viadutos e alcança-nos o cheiro, o inconfundível cheiro, a fogueiras e a pobreza. Então, por um caminho de cabras, através da lama e do lixo, chega-se ao enorme bairro de barracas oculto sob o Eixo Norte-Sul, um lugar a que 200 pessoas chamam casa.
     Quando chegamos, os homens rodeiam-nos e fazem perguntas nervosas em romeno. As mulheres gritam, impacientes. As crianças escondem-se. A comunicação é difícil, entre gestos e escombros de língua portuguesa. Querem saber ao que vimos, se somos da polícia ou da Câmara, porque estamos ali… Os ciganos** romenos de Lisboa não estão acostumados a visitas simpáticas… Os ânimos serenam quando chega um homem mais velho com um sorriso dourado, que responde pelo nome de Constantin e que parece saído de um filme de Kusturica. Constantin é o Rom Baro, o líder do clã de ciganos. Com a ajuda de Dorin, um adolescente que se distingue entre os romenos pelo talento para as línguas, começa uma visita guiada que duraria uma semana.

     Má reputação
     Sem água, sem electricidade, sem esgotos. Mais de duzentos cidadãos da União Europeia sobrevivem em Lisboa em condições infra-humanas. Vivem em cerca de 60 barracas toscas de metro e meio de altura, improvisadas com os materiais disponíveis no lixo: paus, plásticos, placas de alumínio. "Não nos dedicarmos muito a construir as casas" explica Dorin "Não vale a pena. É trabalho e tempo para o lixo".   De três em três meses, às vezes menos, a Câmara Municipal de Lisboa visita o acampamento acompanhada de polícias e escavadoras. Sem qualquer aviso prévio, destroem todas as barracas, com tudo o que lá estiver dentro. Para a Junta de Freguesia de Campolide e para a Câmara Municipal de Lisboa trata-se de "resolver um problema de salubridade e higiene pública". Para as famílias que aqui vivem, trata-se do direito a ter uma casa. Então, a CML continua a destruir as casas e os romenos continuam a levantá-las do chão.
     João Afonso, vereador de Direitos Sociais da CML alega que não há interesse dos romenos em sair desta situação. Os imigrantes desmentem "Qual solução?! Se nos derem uma casa, nós saímos daqui agora! Vamos! Onde está?" responde Bogdan, um mecânico de trinta e seis anos. Questionado sobre que soluções foram propostas, João Afonso responde que "Junto de outros parceiros, como a Santa Casa e o ACM (Alto Comissariado para as Migrações) procurou-se alojar temporariamente estas pessoas, mas elas recusam sempre".
     Afinal, quem diz a verdade? A primeira coisa que devemos saber sobre os ciganos romenos é que eles mentem. Tiveram de aprender a mentir para sobreviver a séculos de perseguições, expulsões e genocídios. A primeira resposta às nossas perguntas é quase sempre uma mentira, mas trata-se de um mecanismo de defesa: quando se é cigano romeno é melhor dar sempre a resposta que nos traz menos problemas. "Nós estamos bem!"; "Não, os portugueses não são racistas"; "Nós não somos ciganos"; "Somos católicos". Só depois, ao cabo de alguns dias, quando podem e querem confiar, é que dizem a verdade, feia e cruel, tal como ela é.

               Um antro de crimes (contra os Direitos Humanos)
     A CML nunca divulgou como procurou realojar esta população, mas a história de João Afonso está mal contada. Contactado para esta reportagem, fonte do ACM informou que não presta apoio a estes imigrantes porque "não são bem imigrantes, são ciganos. Para esse efeito temos o GACI (Gabinete de Apoio às Comunidades Ciganas)." Por sua vez, o GACI também não conseguiu precisar que intervenção leva a cabo debaixo do Eixo Norte-Sul.
     Maria está em Portugal há cinco meses. Veio com toda a família e quer ficar até ao fim do ano. Quase todos os ciganos romenos debaixo desta ponte são migrantes sazonais: vêm durante o Inverno, para fugir às temperaturas glaciais da Roménia e regressam na primavera. Porque vêm? "Na Roménia não há trabalho… em Portugal também não, mas há comida!" diz-me, enquanto exibe um saco do lixo cheio de restos. "Na Roménia passamos fome. Se ficares lá morres! Aqui ninguém morre de fome". O cheiro a lixo e a fezes é nauseabundo. Há crianças doentes e mulheres grávidas. E mesmo assim, todos garantem, que não há miséria portuguesa que se compare à vida na Roménia.
     Todas as manhãs, estas duzentas pessoas levantam-se com a alvorada e vão fazer o que lhes valer algum dinheiro: as mulheres vão pedir, os homens vão estacionar carros e limpar pára-brisas. Alguns são contratados como ajudantes em feiras por ciganos portugueses. Uma minoria tem mesmo contratos de trabalho normais: são empregados de balcão, trabalhadores das limpezas, carregadores… Outra minoria dedica-se a pequenas burlas e a furtos não violentos. Talvez por isso se diga que este acampamento é um antro de crimes, mas normalmente, quando se diz isto não se está a falar dos crimes contra os Direitos Humanos.
     Acompanhamos Cristian, o namorado de Maria, enquanto arruma carros em Belém. Questionado sobre tráfico de droga, armas e seres humanos, é taxativo: "Há quem faça isso, mas não é preciso ser romeno para ser criminoso". Já sobre as supostas redes de exploração da mendicidade, o discurso é outro "É um problema, é verdade… mas olha, eu aqui em Portugal só fui explorado uma vez e foi por um português. Quando cheguei, fui contratado para trabalhar na azeitona, em Beja, durante um mês. Tinham-me prometido duzentos euros. No final, deram-me quinze.  O que é que eu podia fazer?" Na Roménia, Cristian também já fez um pouco de tudo: foi agricultor, construtor e electricista, mas diz-me que em Portugal ninguém lhe dá trabalho, "Sou cigano, não falo português e já estou velho." Com efeito, Cristian tem de mostrar o passaporte para que as pessoas acreditem na sua idade: tem apenas 35 anos mas parece ter 50. E Maria, diz-me ele, tem dezanove.

            A procura da felicidade
      Num acampamento de 200 pessoas, menos de uma dúzia sabe ler, o que torna ainda mais difícil aprender português e integrar-se na sociedade. Apesar de desde 2009 os romenos não precisarem de autorização para trabalhar em Portugal, a situação desta comunidade pouco se alterou. No entanto, há casos de êxito. Adrian, de 24 anos, conseguiu recentemente um trabalho no Jardim Zoológico de Lisboa. "Mudei-me para um quarto a sério, mas ainda venho cá todos os dias… tenho cá família e alguns amigos". Porque escolheu Portugal? Adrian sorri e encolhe os ombros. "O que é que interessa? Nenhuma terra é a nossa terra. Os ciganos romenos não têm terra. Quando é que nos arranjam uma Israel só para nós?" Pergunta a rir. Conta que já passou por Israel, França, Itália e Espanha. "Mas Portugal não é como a França nem como Espanha… aqui a maioria das pessoas não é racista. Há pessoas muito boas".
     De volta ao acampamento, a gritaria anuncia que aconteceu algo. Um adolescente foi acusado de ter roubado comida a uma família, que lhe quis bater. Outras famílias vieram em sua defesa e trocaram-se alguns empurrões. Para acabar com a altercação, alguém atira um pão para o chão. Trôpego e confuso, o rapaz apanha o alimento e engole-o. Explicam-me que se trata de Florin, um rapaz deficiente mental que os pais abandonaram no acampamento há alguns anos. Os outros romenos vão e vêm, mas Florin vai ficando, alimentado pela caridade dos outros mas desamparado, coberto de camadas de fezes e imundície que adivinham a falta de um banho há anos. Quando lhes perguntamos se nunca ninguém do Estado ou da Câmara procurou ajudar Florin, os romenos são unânimes: a única ajuda da CML são bilhetes de ida para a Roménia.

            O fantasma de Nicolae Ceaușescu
      Aqui todas as noites são passadas à volta da fogueira. Os mais velhos contam histórias sobre outros tempos, sobre como era a vida antes da queda do muro (de Berlim, da "cortina de ferro", dos regimes socialistas/comunistas dos "países de leste").   "Nos anos oitenta, fugíamos da Roménia e éramos heróis! Chamavam-nos exilados políticos e davam-nos casas…  Agora, quando fugimos da Roménia, chamam-nos imigrantes ilegais e metem-nos em campos de concentração, como em França" Conta Constantin.   "Com Ceaușescu tínhamos pouca liberdade, com o capitalismo temos ainda menos!  Olha, quando a PSP vem cá fazer rusgas, sabes como é que é? Entram aqui às três da manhã com caçadeiras… obrigam-nos a sair das barracas como estivermos, viram tudo do avesso, os polícias (homens) revistam as nossas mulheres! E se encontram algum bebé, levam-no com eles… dizem que não podemos ter crianças nestas condições… como se tivéssemos escolha!". E na Roménia? "Pior. Mil vezes".
     A situação dos ciganos romenos não é só um problema português nem é de agora. No século XV, Vlad Dracul, que inspirou Drácula e um dos novos heróis nacionais da Roménia, assassinou dezenas de milhares de ciganos, empalando os seus corpos e torturando-os barbaramente. No que é hoje a Roménia, até 1850 os ciganos eram escravos sob propriedade do Estado e apenas durante a II Guerra Mundial, entre 500 mil e 1,5 milhões de ciganos foram exterminados pelo (nazi-)fascismo, um holocausto de que raramente se fala.
    No entanto, a maioria dos problemas actuais começou com a queda do muro de Berlim. A execução do líder (/ditador) socialista romeno Nicolae Ceaușescu e da sua mulher, transmitida em directo pela televisão pública, inaugurou a "revolução democrática" (/capitalista) que conduziu a Roménia até aos nossos dias e rumo à União Europeia. Nessa altura, os novos governantes acusaram os Ceaușescu de serem ciganos e promoveram o derrube do comunismo como uma luta contra a preguiça dos ciganos.
     A Roménia actual é um Estado fundado no racismo. Segundo a ENAR, a Rede Europeia Contra o Racismo, e também de acordo com o Painel Anti-racista da ONU, o racismo na Roménia é transversal a toda a sociedade e afecta especialmente os ciganos, cuja discriminação e segregação geram um ciclo vicioso de pobreza, exclusão e criminalidade.

          Do socialismo à barbárie

Segundo os resultados de um inquérito de 2010, 63% dos romenos considera que se vivia melhor no socialismo. Os ciganos foram uma das comunidades mais beneficiadas pelas conquistas sociais desses tempos. Segundo o estudo do investigador Viorel Achim, o socialismo conseguiu sedentarizar os ciganos, massificou a educação e conferiu-lhes posições de poder no Estado e no Partido. Mas segundo os ciganos romenos de Lisboa, esse processo também não foi pacífico "Davam-nos casas, mas nós estávamos habituados a viver em tendas… então usávamos as casas como estábulos e continuávamos a viver cá fora…"   Só a partir dos anos 70 é que o socialismo conseguiu integrar a maioria dos ciganos na sociedade romena. Nessa década, o desemprego dos ciganos romenos baixou até aos 30%. Hoje em dia, ultrapassa os 70%. Para os ciganos romenos, a democracia que se seguiu, significou racismo, exclusão e miséria. "Nos anos 90 ficámos com as casas, mas quando privatizaram a electricidade e deixámos de poder pagar, voltaram as fogueiras... Uns anos depois, só as paredes não tinham ardido".
    Os exemplos abundam. Em 1993, em resposta a um assassinato às mãos de um cigano, uma turba de romenos incendiou 13 casas, linchou três ciganos e forçou todos os 130 habitantes de uma aldeia a fugir. Em 1999, um diplomata romeno perguntava em Estrasburgo: "Sabem para que servem 32 ciganos?" E, para gáudio e risota geral, respondia: "Para fazer sabonetes em formato 8X4". Em 2001, o Presidente da Câmara de Caiova, a maior cidade do sudeste da Roménia, declarou que "os ciganos fedorentos deviam ser exterminados". No mesmo ano o chefe das forças armadas romenas, Mircea Chelaru, participou na inauguração de um monumento ao líder nazi-fascista Antonescu, responsável pelo genocídio de dezenas de milhares de judeus e ciganos durante a II Guerra Mundial. Em 2011, Cătălin Cherecheș, o Presidente da Câmara de Baia Mare, uma cidade com 250 000 habitantes, mandou construir um muro de três metros de altura para separar os ciganos do resto da população e "manter a ordem e a disciplina". Um pouco por toda a Roménia, várias cidades têm proibido o estilo de música cigano conhecido como Manele.

            Primeiro, vieram buscar os ciganos
      Em Portugal, a situação dos ciganos romenos é possível porque não inspira muita indignação. Quando, em 2014, um incêndio de origem criminosa consumiu uma grande parte das barracas sob o Eixo Norte-Sul, as caixas de comentários dos principais jornais online encheram-se de contentamento, sadismo e violência. Porque, para muitos portugueses que se indignam com o holocausto, os ciganos romenos são menos humanos, do que judeus e portugueses.
     À volta da fogueira, sob as grandes estradas de Lisboa, come-se restos e discute-se como correu o dia. Dois jovens copiam às dezenas cartazes onde, num português quebradiço, se pode ler: "Ajude-me. Sou doente cardíaco, tenho 5 filhos para alimentar". No chão, três crianças jantam agora, directamente de um saco do lixo. Aqui mora uma miséria profunda e antiga, que envergonha. Depois, à medida que a noite avança, um homem toca violino e dezenas de pessoas cantam, em surpreendente afinação, uma música de Gabi Lunca, a "avó do Manele". E Maria, com os olhos mais verdes e o corpo mais leve, dança sob a estrada, tornando Lisboa um pouco mais bonita.

*Fotografias da Década de Inclusão dos Roma.      ** cigano =  gitano, zíngaro, roma, ... ]



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Sábado, 11.10.14

 De  Pol Pot  ao  ISIS:  "Qualquer coisa que voe sobre tudo o que se mova" - por John Pilger

'.    Ao transmitir ordens do presidente Richard Nixon para um bombardeamento "maciço" do Cambodja em 1969, Henry Kissinger disse: "Qualquer coisa que voe sobre tudo o que se mova". Quando Barack Obama desencadeia sua sétima guerra contra o mundo muçulmano desde que recebeu o Prémio Nobel da Paz, a histeria orquestrada nos torna quase nostálgicos da honestidade assassina de Kissinger.

Como testemunha das consequências humanas da selvajaria aérea – incluindo a decapitação de vítimas, com suas partes a adornarem árvores e campos – não estou surpreendido pelo desprezo para com a memória e a história, mais uma vez. Um exemplo marcante é a ascensão ao poder do ditador-genocída Pol Pot e seu Khmer Rouge, que tinha muito em comum com o actual Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS, na sigla em inglês). Eles, também, eram feudais implacáveis que começaram como uma pequena seita. Eles eram também o produto de um apocalipse de fabrico americano, desta vez na Ásia.

Segundo Pol Pot, seu movimento consistira em "pouco menos do que uma guerrilha de 5000 homens fracamente armado e incertos acerca da sua estratégia, táctica, lealdade e líderes". Uma vez que os bombardeiros B52 de Nixon e Kissinger começaram a trabalhar como parte da "Operação Menu", o demónio supremo do ocidente mal podia acreditar na sua sorte.

Os americanos despejaram o equivalente a cinco Hiroshimas no Cambodja rural durante o período 1969-73. Eles arrasaram aldeia após aldeia, retornando para bombardear o entulho e os cadáveres. As crateras deixaram monstruosos colares de carnificina, ainda visíveis a partir do ar. O terror foi inimaginável. Um antigo oficial Khmer Rouge descreveu como os sobreviventes "incapazes de pensar e dizer qualquer coisa perambulavam mudos por três ou quatro dias. Aterrorizados e meio louco, o povo estava pronto a acreditar no que lhes era contado... Foi isso que tornou tão fácil para o Khmer Rouge ganhar poder sobre o povo".

Uma Comissão de Inquérito do Governo Finlandês estimou que 600 mil cambodjianos morreram na resultante guerra civil e descreveu o bombardeamento como a "primeira etapa numa década de genocídio". O que Nixon e Kissinger começaram, Pol Pot, seu beneficiário, completou. Sob as suas bombas, o Khmer Rouge cresceu chegando a um formidável exército de 200 mil homens.

O ISIS tem passado e presente semelhante. De acordo com a maior parte das mensurações académicas, a invasão do Iraque por Bush e Blair levou à morte de umas 700 mil pessoas – num país que não tinha história de jihadismo. Os curdos fizeram acordos territoriais e políticos, os sunitas e xiítas tinham diferenças de classe e sectárias, mas estavam em paz, casamentos mistos eram comuns. Três anos antes da invasão, conduzi extensamente e sem medo através do Iraque. Pelo caminho encontrei pessoas orgulhosas, acima de tudo, de serem iraquianos, os herdeiros de uma civilização que para eles parecia presente.

Bush e Blair explodiram tudo isto. O Iraque é agora um ninho de jihadismo. A al-Qaeda – tal como os "jihadistas" de Pol Pot – agarrou a oportunidade proporcionada pela carnificina do Pavor e Choque e da guerra civil que se seguiu. A Síria "rebelde" apresentava ainda maiores recompensas, com a CIA e estados do Golfo a abastecerem de armas, logística e dinheiro que passavam rapidamente através da Turquia. A chegada de recrutas estrangeiros era inevitável. Um antigo embaixador britânico, Oliver Miles, escreveu recentemente: "O governo [Cameron] parecia estar a seguir o exemplo de Tony Blair, o qual ignorou o conselho constante do Foreign Office, do MI5 e do MI6 de que a nossa politica no Médio Oriente – e em particular nossas guerras no Médio Oriente – haviam sido o principal impulsionador no recrutamento de muçulmanos na Grã-Bretanha para o terrorismo aqui".

O ISIS é o rebento daqueles em Washington e Londres que, ao destruir o Iraque tanto como estado como como sociedade, conspiraram para cometer um crime monstruoso contra a humanidade. Tal como Pol Pot e o Khmer Rouge, o ISIS são as mutações de um terrorismo de estado ocidental administrado por uma elite imperial venal que não recua diante das consequências de acções tomadas com grande distanciamento em termos de cultura. Sua culpabilidade não pode ser mencionada nas "nossas" sociedades.

Passaram-se 23 anos desde que este holocausto envolveu o Iraque, imediatamente após a primeira Guerra do Golfo, quando os EUA e a Grã-Bretanha sequestram o Conselho de Segurança das Nações Unidas e impuseram "sanções" punitivas sobre a população iraquiana – reforçando, ironicamente, a autoridade interna de Saddam Hussein. Foi como um sítio/cerco medieval. Quase tudo o que sustentava um estado moderno estava, no jargão, "bloqueado" – desde o cloro para tornar a água potável até lápis para escolas, peças para máquinas de raios X, analgésicos comuns e drogas para combater tipos de cancro anteriormente desconhecidos transportados na poeira dos campos de batalha do Sul contaminados com Urânio Empobrecido.

Pouco antes do Natal de 1999, o Departamento do Comércio e Indústria em Londres restringiu a exportação de vacinas destinadas a proteger crianças iraquianas contra difteria e febre-amarela. Kim Howells, um médico doutorado e parlamentar, subsecretário de Estado no governo Blair, explicou porque: "As vacinas das crianças", disse ele, "poderiam ser utilizadas em armas de destruição em massa". O governo britânico podia escapar impune a um tal ultraje porque os media que informavam do Iraque – grande parte deles manipulados pelo Foreign Office – culpavam Saddam Hussein por tudo.

Sob o falso programa "humanitário" Petróleo por Alimentos, US$100 foram concedidos a cada iraquiano para viver durante um ano. Este quantitativo tinha de pagar todas a infraestrutura da sociedade e serviços essenciais, tais como energia e água. "Imagine", contou-me o Assistente do Secretário-Geral da ONU Hans Von Sponeck, "estabelecer essa ninharia contra a falta de água limpa e o facto de que a maioria das pessoas doentes não tem meios para tratamento e o trauma absoluto de receber dia a dia, e você tem um vislumbre do pesadelo. E não se engane, isto é deliberado. No passado eu não quis utilizar a palavra genocídio, mas agora é inevitável".

Desgostoso, Von Sponeck demitiu-se do cargo de Coordenador Humanitário da ONU no Iraque. Seu antecessor, Denis Halliday, um igualmente distinto alto responsável da ONU, também se havia demitido. "Fui instruído", disse Halliday, "a implementar uma política que satisfizesse a definição de genocídio: uma política deliberada que matou efectivamente bem mais de um milhão de indivíduos, crianças e adultos".

Um estudo do Fundo das Nações Unidas para as Crianças, Unicef, descobriu que entre 1991 e 1998, na altura do bloqueio, houve um "excesso" de 500 mil mortes de crianças iraquianas com idade inferior a cinco anos. Um repórter da TV americana colocou isto a Madeleine Albright, embaixadora junto às Nações Unidas, perguntando-lhe: "Valeu a pena pagar este preço?" Albrigth respondeu: "Nós pensamos que valeu a pena".

Em 2007, o alto responsável britânico pelas sanções, Carne Ross, conhecido como "Mr. Iraque", disse a um comité parlamentar: "[Os governos dos EUA e Reino Unido] efectivamente negaram a toda a população meios para viver". Quando entrevistei Carne Ross três anos depois, ele estava consumido pelo arrependimento e contrição. "Sinto-me envergonhado", disse ele. Hoje é um dos raros que diz a verdade sobre como governos enganam e como os media complacentes desempenham um papel crítico na disseminação e manutenção do engano. "Nós alimentávamos [os jornalistas] com factóides de inteligência expurgada", disse ele, "ou os congelávamos do lado de fora".

Em 25 de Setembro, numa manchete do Guardian, lia-se: "Confrontados com o horror do Isis nós devemos actuar". O "nós devemos actuar" é um fantasma em ascensão, uma advertência da supressão da inteligência e memória informada, de factos, de lições aprendidas e de lamentos ou vergonha. O autor do artigo era Peter Hain, o antigo ministro do Foreign Office responsável pelo Iraque sob o governo Blair. Em 1998, quando Denis Halliday revelou a extensão do sofrimento no Iraque pelo qual o governo Blair partilhava a responsabilidade primária, Hain insultou a Newnight da BBC como uma "apologista de Saddam". Em 2003, Hain apoiou a invasão de Blair do Iraque ferido com base em mentiras transparentes. Numa conferência subsequente do Partido Trabalhista ele descartou a invasão como uma "questão marginal".

Agora Hain está a exigir "ataques aéreos, drones, equipamento militar e outros apoios" para aqueles "que enfrentam o genocídio" no Iraque e na Síria. Isto promoverá "o imperativo de uma solução política". Obama tem o mesmo em mente quando levanta o que chama de "restrições" a bombardeamentos e ataques americanos com drones. Isto significa que mísseis e bombas de 500 libras [226,5 kg] podem esmagar os lares de camponeses, como estão a fazer sem restrição no Iémen, Paquistão, Afeganistão e Somália – tal como fizeram no Cambodja, Vietname e Laos. Em 23 de Setembro, um míssil de cruzeiro Tomahawk atingiu uma aldeia na Província Idlib, na Síria, matando até uma dúzia de civis, incluindo mulheres e crianças. Nenhuma agitava uma bandeira negra.

No dia em que o artigo de Hain apareceu, Danis Halliday e Hans Von Sponeck por acaso estavam em Londres e vieram visitar-me. Eles não estavam chocados pela hipocrisia letal de um político, mas lamentaram a duradoura, quase inexplicável, ausência de diplomacia inteligente a negociar um simulacro de trégua. Por todo o mundo, da Irlanda do Norte ao Nepal, aqueles que encaravam um ao outro como terroristas e heréticos haviam-se defrontado um ao outro numa mesa. Por que não agora no Iraque e na Síria.

Tal como o Ébola da África Ocidental, uma bactéria chamada "guerra perpétua" atravessou o Atlântico. Lord Richards, até recentemente à testa dos militares britânicos, quis "botas sobre o terreno" agora. Há um tedioso, quase sociopático, palavreado de Cameron, Obama e sua "coligação da vontade" – nomeadamente o estranho Tony Abbott da Austrália – quando prescrevem mais violência despejada de 30 mil pés [9,1 km] sobre lugares onde o sangue de aventuras anteriores nunca secou. Eles nunca viram bombardeamentos e aparentemente amam-no tanto que querem derrubar seu único potencialmente aliado válido, a Síria. Isto não tem nada de novo, como ilustra o seguinte dossier que escapou da inteligência do Reino Unido-EUA:

"A fim de facilitar a acção das forças liberativas [sic]... deveria ser feito um esforço especial para eliminar certos indivíduos chave [e] prosseguir com perturbações internas na Síria. A CIA está preparada e o SIS (MI6) tentará montar sabotagens menores e incidentes de coup de main [sic] dentro da Síria, trabalhando através de contactos com indivíduos... um necessário grau de medo... fronteira e choques de fronteira [encenados] proporcionarão um pretexto para intervenção... a CIA e o SIS deveriam utilizar... capacidades tanto nos campos psicológico como de acção para aumentara a tensão".

Isto foi escrito em 1957, embora pudesse ter sido escrito ontem. No mundo imperial, nada muda no essencial. No ano passado, o antigo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Roland Dumas, revelou que "dois anos antes da Primavera Árabe", lhe disseram em Londres que estava planeada uma guerra à Síria. "Vou contar-lhe algo", disse ele numa entrevista com o canal LPC da TV francesa, "Eu estava na Inglaterra dois anos antes da violência na Síria devido a outros negócios. Encontrei responsáveis britânicos de topo, os quais confessaram-me que estavam a preparar algo na Síria... A Grã-Bretanha estava a organizar uma invasão de rebeldes dentro da Síria. Eles perguntaram-me mesmo, embora eu já não fosse ministro dos Negócios Estrangeiros, se gostaria de participar... Esta operação vem de trás. Ela foi preparada, pré concebida e planeada".

Os únicos oponentes efectivos do ISIS são demónios certificados do ocidente – Síria, Irão, Hezbollah. O obstáculo é a Turquia, um "aliado" e membro da NATO, a qual conspirou com a CIA, o MI6 e os Estados medievais do Golfo para canalizar apoio aos "rebeldes" sírios, incluindo aqueles que agora se chamam a si próprios de ISIS. Apoiar a Turquia na sua antiga ambição pela dominância regional através do derrube do governo Assad provocou uma grande guerra convencional e o horrífico desmembramento do Estado mais etnicamente diversificado do Médio Oriente.

Uma trégua – ainda que difícil de alcançar – é o único meio de sair deste labirinto imperial; do contrário, as decapitações continuarão. Que negociações genuínas com a Síria fossem vistas como "moralmente questionáveis" (The Guardian) sugere que as suposições de superioridade moral entre aqueles que apoiaram a guerra criminosa continuam a ser não só absurdas como também perigosas.

Juntamente com uma trégua, deveria haver uma cessão imediata de todos os despachos de materiais de guerra para Israel e o reconhecimento do Estado da Palestina. A questão da Palestina é a mais supurada ferida aberta da região e a frequentemente declarada justificação para o crescimento do extremismo islâmico. Osama bin Laden tornou isto claro. A Palestina também dá esperança. Ao dar justiça aos palestinos começa-se a mudar o mundo em torno deles.

Mais de 40 anos atrás, o bombardeamento de Nixon-Kissinger do Cambodja desencadeou uma torrente de sofrimentos dos quais aquele país nunca se recuperou. O mesmo é verdadeiro em relação ao crime de Blair-Bush no Iraque. Com cronologia impecável, o mais recente livro em causa própria de Henry Kissinger acaba de ser divulgado com o título satírico, "Ordem mundial" ("World Order"). Numa resenha adulatória, Kissinger é descrito como um "perfilador chave de uma ordem mundial que permaneceu estável durante um quarto de século". Diga isso ao povo do Cambodja, Vietname, Laos, Chile, Timor-Leste e todas as outras vítimas da sua "arte de governar". Só quando "nós" reconhecermos os criminosos de guerra em nosso meio é que o sangue começará a secar.

[10.10.2014, original em johnpilger.com/... ;  este artigo encontra-se em http://resistir.info/ ].

----------   Arin  Mirkan

 Arin Mirkan, membro das Unidades de Protecção Popular (curdas), para que não a matassem ou fizessem prisoneira (e escrava), fez-se explodir, no passado Domingo, lançando-se contra quem a cercava, e terá matado dezenas de jihadistas.
      Segundo as últimas notícias que li, «o Estado Islâmico terá conseguido conquistar o quartel-general das forças curdas que defendem Kobani, dominando já quase metade da cidade curda no Norte da Síria».     Durante mais de dois anos, Kobani foi poupada ao conflito, acolhendo milhares de deslocados árabes, curdos e turcomanos. Recentemente, foi o êxodo de cerca de 200.000 para a Turquia, acossados pelo avanço do Estado Islâmico.   
     Qualquer que seja o desfecho, infelizmente cada vez mais sinistramente previsível, desta tragédia, Arin ficará como símbolo heróico da valentia de um povo – e da nossa vergonhosa impotência também.   


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Segunda-feira, 23.06.14

Do Genocídio ao Etnocídio dos Índios Guarani-Kaiowá

Os Índios Guarani-Kaiowá anunciaram, no Matogrosso do Sul, um suicídio em massa

                "Por Felipe Patury, Época
   Uma carta assinada pelos líderes indígenas da aldeia Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul (Brasil), e remetida ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), anuncia o suicídio coletivo de 170 homens, mulheres e crianças se a Justiça Federal mandar retirar o grupo da Fazenda Cambará, onde estão acampados provisoriamente às margens do rio Hovy, no município de Naviraí. Os índios pedem há vários anos a demarcação das suas terras tradicionais, hoje ocupadas por fazendeiros e guardadas por pistoleiros. O líder do PV na Câmara, deputado Sarney Filho (MA), enviou carta ao ministro da Justiça pedindo providências para evitar a tragédia.
Leia a íntegra da carta dos índios ao CIMI:
Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil
      Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012.   Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS.
     Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay.   Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminando as nossas vidas.   Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira.   A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil?   Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós.   Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas.
   Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.
   Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.
    Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Atenciosamente, Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay". 
(Portal do Luis Nassif) (via F.Pinto no FB, 


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