Lembro-me de, desde a segunda metade da década de 80, se ter iniciado - e sempre em crescendo - a introdução das ideias de “exploração” da actividade que é exercida pela Administração Pública (AP) como se de uma actividade privada se tratasse, como se fosse industrial ou, pior ainda, cada Direcção-Geral fosse uma empresa de comércio.
[A estas ideias, juntaram-se as "parcerias público privadas", o "outsourcing" - 'adjudicando' a empresas, consultores e gabinetes privados ... o 'fornecimento' de bens e serviços que antes eram realizados dentro da AP - e, mais tarde, um novo sistema de 'avaliação' (o SIADAP) dos trabalhadores da AP, e as 'reformas' de vínculos, estatutos, carreiras, categorias e mobilidade 'especial'... tudo tendo como objectivo final a redução do Estado (para o 'mínimo') e o desmantelamento da sua capacidade de produção, intervenção e regulação económica ... Ao mesmo tempo multiplicavam-se institutos e empresas públicas e os custos exponenciais eram escondidos em desorçamentações e contabilidade criativa.]
Começou, entre outras coisas (como a de que a AP tinha que seguir as regras de concorrência, por exemplo), com o seu símbolo máximo: o cidadão - ou outro utilizador dos serviços públicos - deveria ser tratado como “CLIENTE”.
Ora, cliente é sinónimo de (dizem os dicionários) “pessoa que requer serviços mediante pagamento, que compra algo; comprador; freguês”.
Ao ponto onde o avanço de tal ideia nos trouxe, parece-me, ninguém tem dúvidas. Mas há sempre alguns que querem mais e não hesitam em atirar tudo ao precipício, no afã de, dos cacos, apanharem uma jóia reluzente.
Sabemos, não vale a pena metermos a cabeça na areia, que a AP sofreu uma desmesurada inflação nos recursos humanos, no período a seguir à revolução de Abril, como forma de secar potenciais conflitos sociais, tal o nível a que chegou a destruição do tecido económico e, com ele, a possível horda de desempregados, não fosse a abertura de todas as portas, mesmo as que não existitam, a quem quer que se apresentasse à função pública.
Depois, temos assistido à desenfreada distribuição de lugares públicos, dos mais humildes aos mais elevados, como forma de comprar votos e garanti-los no futuro, quiçá até, dominar pontos chave do poder administrativo do Estado, ou “dividindo” o Estado em tantas partes quantas as que conseguem a imaginação e as necessidades partidárias, quer dentro da Adinistração Central, quer fora dela, criando e fazendo nascer, com mais facilidade que cogumelos, instituições e empresas públicas que prosseguem funções em cumulação com as funções públicas tradicionais para as quais existem Direcções-Gerais ou equivalentes, ou mesmo em contradição com elas, ou fingem que têm algo útil a prosseguir a par delas, e chegámos, sem dúvida, a um corpo da AP insustentável.
Nunca se viu, ou só se viu de forma tíbia, um partido político “meter o dedo na ferida” e tomar as medidas [PRACE e Simplexes...] que, em minha opinião, são realmente necessárias.
Tem sido este o caminho escolhido pelos principais partidos políticos que, nos últimos tempos, ou não têm quadros capazes de analisarem as reais causas do estado a que o Estado-Administração chegou ou/e de tomarem as consequentes e necessárias medidas que ele necessita.
A manutenção do princípio de que o Estado-Administração tem de prosseguir a sua actividade pública como se privada fosse vai-nos atirar, definitivamente, lá para o fundo, onde nem cacos sobrarão.
Não há outra forma de ver o exercício da função pública (entenda-se, as funções públicas) que não seja como o exercício de uma missão, onde o objectivo primordial é servir, com desprendimento (abnegação, generosidade e independência), os que são a sua razão de existir, quer como fim, quer como meio de financiamento da mesma. De forma racional, q.b., mas não mais que isso. Sem querer dizer que quem se dedica a essa missão tenha que ser “franciscano”.
A este propósito, sem que esteja totalmente de acordo com o que a sua ironia pretende transmitir, vem bem a calhar lembrar este texto de José Saramago:
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.» - In Cadernos de Lanzarote - Diário III