Tal como em Portugal, há quem
entenda que a democracia tem donos e só admite à governação os que pertencem a um certo subconjunto dos partidos, mesmo que todos sejam votados pelo povo. Tal como acho isso
inadmissível em Portugal, acho isso inadmissível na Europa. As minhas simpatias políticas não vão, à partida, para o Syriza, tal como não vão, em Portugal, para, digamos, o Bloco de Esquerda – mas, indiscutivelmente, se o Bloco de Esquerda ganhasse as eleições em Portugal eu teria de
estar contra qualquer tentativa europeia de boicotar um governo do meu país. Tenho de pensar o mesmo em relação à Grécia. Acresce que
a Europa, tão tesa com a Grécia, contemporiza muito facilmente com o regime pré-fascista da Hungria (a ponto de o Sr. Juncker, naquela triste ocasião da cimeira de Riga em que distribuiu palmadas e outras palhaçadas pelos líderes europeus, ter chamado ao PM húngaro, em tom de brincadeira, “o ditador” – como se isso fosse coisa com que se brincasse). E essa bonomia com os fascistas aconselharia, apenas por decência, menos rigidez com outras orientações.
Esta ruptura também será, se se confirmar, um fracasso da Europa como corpo institucional, porque
abre a porta a um recuo inédito na construção europeia: se a Grécia sair do Euro,
é um passo atrás que destrói a imagem do “avanço permanente” (mesmo que por pequenos passos). E, no que toca a recuos, nada como o primeiro – para abrir a possibilidade da série. Quem pense que tudo isto só afecta o Euro,
desengane-se: esta é uma crise profunda de todo o projecto de construção europeia, amolgado pelos egoísmos vesgos e pela falta de estatura histórica dos líderes europeus que calharam em (má) sorte a este nosso tempo.
Esta ruptura sinaliza a fraqueza institucional da Europa também por causa do papel que
deixaram o FMI desempenhar: o papel de polícia mau, a fazer propostas e exigências negociais incompreensíveis, talvez para cobrir alguns governos europeus que queiram
atirar a pedra e esconder a mão. Sobre o que parece ser a irracionalidade do comportamento do FMI, basta ouvir o que diz Manuela Ferreira Leite, insuspeita de esquerdismo, mas sem qualquer necessidade de esconder o que pensa por conveniência. Como resume Nicolau Santos no Expresso (Economia, 27/06/15): “o que leva o Fundo a recusar que o Governo grego opte por um
corte significativo nas despesas com a Defesa, sabendo-se precisamente que a Grécia canaliza para esta área o terceiro maior orçamento dos países da UE? Ou a recusar que Atenas
aplique uma taxa extraordinária às empresas com mais de meio milhão de lucros anuais? Ou a recusar um importante aumento de impostos sobre quem mais pode, ao contrário do que aceitou em Portugal? Ou a recusar que o Governo helénico
taxe o jogo online?!» Tudo boas perguntas, mas a pergunta mais perturbadora ainda é:
e os países do Euro, Estados Membros da União Europeia, admitem isto? Mas esta ruptura é também um fracasso do governo grego.
(Ao dizer isto, estou a assumir que o governo de Tsipras estava de boa-fé a tentar chegar a acordo na Europa – e estou a afastar o cenário segundo o qual tudo isto teria um estratagema para justificar a ruptura.)
O governo grego
recebeu um mandato para encontrar uma alternativa à austeridade. Tinha, portanto, de tentar encontrar esse espaço na Europa. O método que costuma funcionar para
encontrar espaço na Europa consiste em tentar encontrar aliados, construir alianças, mobilizar solidariedades. Ora, o actual governo da Grécia apareceu, desde o início, demasiado compenetrado da sua singularidade, demasiado ufano do seu isolamento. Até o brilhante ministro das finanças, Varoufakis, pareceu demasiadas vezes ofuscado com o brilho da sua estrela. Não é nunca bom método na Europa.
Alguns representantes da social-democracia europeia tentaram estender a mão à Grécia (enquanto outros, em boa verdade,
têm uma acção política que nos envergonha). [«Há "socialistas" europeus a fazerem figuras tristes, isso é verdade. Mas não todos. E os únicos sinais de aproximação à Grécia têm vindo de socialistas europeus. Que, infelizmente,
têm pouca força: os europeus votaram na direita na europeias e agora é isto.»]. Até o presidente da Comissão chegou a dar sinais de alguma contemporização. Mas o brilho retórico do académico Varoufakis não chegou para construir uma coligação capaz de criar um espaço de acordo alternativo. Parece, no plano da retórica, ter caído na
armadilha de governos provocadores, como o português, que destratou o governo grego com o “conto de crianças”, tendo Passos chegado ao ponto de nem cumprimentar Tsipras na estreia deste no Conselho Europeu.
Na verdade, não creio que as propostas que o governo grego tem apresentado aos seus congéneres europeus sejam propostas radicais.
Radicais têm sido, por exemplo, as destemperadas reacções do FMI. Mas, quanto à pura política, o governo grego escolheu caminhos preocupantes. Desde o princípio, desde a formação do governo: o actual governo da Grécia não é exactamente um governo de esquerda, mas sim uma coligação entre uma frente de partidos usualmente designados como extrema-esquerda (o Syriza) e um partido marcadamente de direita, populista e nacionalista, anti-imigração, anti-semita, contra a separação entre o Estado e a Igreja, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Tsipras podia ter feito outra opção: por exemplo, o partido O Rio (potami), centrista moderado, pró-europeu e anti-austeridade, era considerado um candidato óbvio a parceiro do Syriza para completar a maioria. Mas não foi essa a escolha e a escolha efectivamente feita nunca foi um bom sinal.
Agora, esta ideia do referendo tem contornos estranhos.
Não estou, em princípio, contra a convocação de
um referendo. Concordo que uma maioria de representantes possa entender que
as consequências de uma decisão são suficientemente estruturantes da vida colectiva para deverem ser decididas por voto directo. Aliás, já anteriormente o governo PASOK de Georgios Papandreou quis (em 2012) fazer
um referendo ao plano de resgate proposto pelos parceiros europeus, embora dele tenha desistido pressionado pela Alemanha (e até por alguns aliados) e tendo obtido o apoio da direita parlamentar ao plano de resgate. (Já agora, alguém se lembra de qual foi a posição de Tsipras sobre o referendo que Papandreou propôs?)
Mas este referendo é bizarro. Com os dados que temos neste momento, pode crer-se que o referendo não foi convocado a tempo para ser uma peça da negociação, porque vai acontecer depois do fim do programa de assistência e, portanto, vai plebiscitar qualquer coisa depois do facto consumado. Vão votar uma proposta dos credores que nessa altura já não estará em cima da mesa? Curiosamente, o governo grego parece ter o apoio dos fascistas (Aurora Dourada) para o referendo. Será que, nestas condições, o referendo tem alguma potencialidade para abrir para uma solução? Ou o referendo é apenas a entrada para um beco sem saída? Sim, eu também
concordo com o primado da política (em vez da ditadura dos mercados, da alta finança), mas isso exige que os actos políticos tenham algum sentido – e não estou certo do que quererá o governo grego fazer com o resultado do referendo. O referendo não faz grande sentido se for apenas o fim da linha, faria mais sentido se fosse claro quanto a uma opção de futuro.
Agora, pesadas todas as responsabilidades, desenganem-se aqueles que pensam que isto é um fracasso da Grécia.
Isto é, acima de tudo, um fracasso da Europa – e, claro, nessa medida, também um fracasso da Grécia.
Não são as pequenas circunstâncias políticas que interessam neste caso. Não é o destino deste ou daquele político ou partido que importa agora. O que
importa é saber se a Europa vai ser capaz de reganhar o seu estatuto como espaço democrático de dimensão continental a trabalhar para a prosperidade partilhada dos povos participantes. Se não for capaz de retomar essa ambição de longo prazo e dar-lhe concretização, a Europa como construção política original só pode definhar – em primeiro lugar, porque
os povos desacreditarão. Como, aliás, já começam a desacreditar.
Como se vê, não são optimistas estas reflexões. Mas o pessimismo não ilumina o caminho. E o que precisamos é de um caminho,
um caminho que recusa o pensamento único.
Recusar a tese de que quem está na Europa tem de seguir a “austeridade expansionista”. Recusar, concomitantemente, a tese de que, para
fazer uma política alternativa é preciso sair da Europa (ou
sair do Euro). Essas duas teses têm algo em comum: aceitam que na Europa só é possível o pensamento único. E isso é inaceitável para um democrata:
em democracia tem sempre de haver escolha. E é nessa escolha –
que tem de ser realistas, mas tem de ser escolha – que
se joga a democracia política, mas também económica e social. Há que trabalhar para
não nos vergarmos à ditadura do pensamento único.
(Como não podia deixar de ser, continuo basicamente na mesma linha que estava há três meses,
quando disse ao Público o que pensava sobre isto.)
Trabalhos e escravidões (-AMCD)
Pouco tempo tem havido para escrever nos Trabalhos e os Dias. Os trabalhos têm tomado conta dos dias. Os dias afogam-se em trabalhos que não nos deixam respirar. Qualquer fuga episódica ao trabalho está condenada ao fracasso. Pagam-se caras as fugas com o acumular dos trabalhos aquando do regresso.
São os tempos de uma ideologia para a qual o trabalho é um fim e não um meio. Esta fé incondicional no trabalho como um fim em si mesmo*, no papel da empresa e no crescimento económico como panaceias para a resolução dos problemas sociais é completamente equívoca. Se uma empresa puder realizar a sua produção com dois, não empregará quatro, nem que tenha de sobrecarregar os dois que emprega (Se tal lhe for permitido! E com estes que nos governam, diga-se de passagem, tudo lhes é permitido). Tão simples como isso. E se necessário fá-lo-ão só com um, sobrecarregando-o mais ainda e baixando-lhe o salário, que é um "custo de produção". As empresas não são a Santa Casa da Misericórdia nem a sua vocação é o combate aos problemas sociais. E assim vamos sendo conduzidos à servidão por uma ideologia marcada pela fé cega na Empresa, no empresário e no empreendedorismo que resvala para a exploração do Homem pelo Homem. Esta sim, é a estrada que conduz à servidão. Num extremo, lá está a velha memória da escravatura, as mulheres e crianças das minas de carvão ou nas fábricas inglesas, exploradas por patrões humanos, muito humanos. ***
Alguns papagaios, comentadores do regime, afirmam por aí que o PSD não tem um programa e blá, blá, blá…e que já devia ter e blá, blá, blá… Como se precisasse. Ainda não perceberam ao fim de quatro anos o programa (neoliberal) do PSD (com ou sem CDS)? Ele é austeridadetarismo, redução de funcionários públicos, redução de salários e de pensões, congelamento de carreiras, desestruturação do Estado, retirada do Estado da economia (como se fosse possível colocar o Estado num compartimento estanque, desligado da economia) e a transferência dos seus serviços para os privados (os mercados), as privatizações, a precariedade, etc., etc., etc. Claro que para realizar tudo isto é preciso criar um ambiente de desconfiança em relação aos serviços do Estado. E estes governantes desconfiam do Estado que governam e manifestam-no às claras. A empresa privada realiza melhor, acreditam dizem eles. É o cúmulo.
E eis um dos resultados dantescos desta política: num dos países demograficamente mais velhos do mundo, os jovens foram, e ainda são, obrigados a emigrar em massa. Um desperdício de recursos humanos e dos esforços de uma sociedade que neles investiu, sendo agora outras as sociedades que colhem os frutos desse investimento. Há exemplo maior do que este acerca do que é um mau governo num período de paz?
Enfim, prosseguem os dias afogados em trabalhos. São os trabalhos e os dias dos tempos que correm. É sábado. Vou trabalhar que o trabalho já se acumula.
___ (*) Aos amantes do trabalho, fiquem sabendo: os nazis tinham a política de extermínio pelo trabalho, a Vernichtung durch Arbeit. O trabalho não era um fim em si mesmo. O trabalho era o fim. O trabalho liberta ('Arbeit macht frei' dístico no campo de concentração nazi de Auschuitz)? Talvez, se não for excessivo, caso contrário, mata. (outra forma de 'libertação', uma "solução final" para os indesejados !)