Siga o leitor o guião da peça, para melhor compreender o que se passa na nossa democracia. Ou, quiçá, para dar largas ao seu protesto, sempre que ela voltar a ser exibida num teatro perto de si.
Primeiro acto. Alguém denuncia suspeitas de corrupção, anónima ou assumidamente, a uma autoridade policial ou judiciária. A dita entidade põe-se em campo. Investiga, mexe e remexe. Enfrenta resistências, apura indícios, constitui arguidos, formula acusações. Até aqui, nada de anormal: cada um cumpre o papel que num Estado de Direito lhe está destinado.
Segundo acto. É encenado em função do suspeito. Se é um pé-rapado - que tontice, um pé-rapado não se mete em corrupções; quando muito pratica a cunha, o mais popular dos desportos nacionais... - ficam as coisas na discrição dos gabinetes da Judiciária ou do Ministério Público, até chegar a um julgamento de que só dois ou três vizinhos do dito se aperceberão. Estando em causa alguém poderoso, o mais provável é que, por baixo da mesa, o caso chegue a um jornal ou a uma televisão. Em regra, partes da realidade ou da aparência dela, como extractos de escutas telefónicas. Sempre a coberto do confortável anonimato, para obviar o risco de violação do segredo de justiça. Muitas vezes com os jornalistas a servirem de simples mensageiros, abdicando do escrutínio crítico do material a que têm acesso.
Terceiro acto. O suspeito queixa-se de que está a ser alvo de um julgamento na praça pública e cuida de contratar um bom advogado. O aparelho de Justiça faz a revisão da matéria, para verificar se não cometeu um deslizezinho processual capaz de deitar tudo a perder. Mais um par de fugas de informação, cirurgicamente soltas, contribui para baralhar o jogo, perturbar a percepção que se tem do processo ou, simplesmente, desviar as atenções.
Quarto acto. O caso ganha volume e ramificações até então desconhecidas. Seja o suspeito um político e a classe movimenta-se. Alguns (poucos, que ninguém quer más companhias) saem em sua defesa. A maioria jura combate sem tréguas à corrupção, propõe uma - mais uma - alteração legislativa capaz de a reduzir de vez ao perdão de uma dívida fiscal de cinco euros em troca de um pequeno-almoço no bar da esquina. E, pela enésima vez, fala-se em punir a sério o enriquecimento ilícito ou levantar o sigilo bancário.
Quinto acto. Com o tempo, o escândalo desaparece do espaço mediático, talvez substituído por outro, que repetirá o mesmo guião.
A corrupção segue imperturbável. Tão nociva e viciante como o tabaco. Como ele, corrói a saúde; como ele, gera habituação. Habituação a uma "dramaturgia democrática" em que o sexto acto, a condenação em tribunal, raramente sobe à cena.
[Jornal de Notícias, Paulo Martins]
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