A propósito de um post de Paulo Pedroso em Banco Corrido
“Numa sociedade em que cada um tenha algo a guardar e pouco a tomar, será difícil a ocorrência de revoluções violentas”, dizia Tocqueville. Nas sociedades democráticas, em comparação com as velhas aristocracias, os “pobres” seriam em pequeno número e, além disso, não estariam ligados por laços de uma miséria irremediável e hereditária, enquanto que os ricos, além de pouco numerosos, não permitem que os seus privilégios atraiam os olhares, como acontecia com a riqueza fundiária. Isto é, os ricos não constituiriam uma classe à parte que facilmente pudesse ser despojada pelos pobres.
Entre estes dois extremos, adianta o autor, “acha-se uma multidão inumerável de homens quase idênticos que, sem serem precisamente ricos ou pobres, possuem bens suficientes para desejar a ordem, mas não os têm em demasia para suscitar a inveja. (...) Sem dúvida que não vivem satisfeitos, mas mantêm com ardor inigualável o desejo de enriquecer, embora esse desejo tenda a permanecer dentro dos limites necessários, porque o facto de viverem numa situação de relativo conforto, que é tão afastada da opulência como da miséria, leva-os a atribuir aos seus bens um preço imenso (...).
Como estão ainda muito próximos da pobreza, vêem de perto os seus rigores, e temem-nos; entre ela e estes mais não há que um pequeno património sobre o qual fixam imediatamente os seus temores e as suas esperanças. A cada instante, interessam-se primeiro pelos cuidados constantes que ele lhes dá e ligam-se-lhes cada vez mais pelos esforços diários que fazem para o aumentar. A ideia de ceder a menor parte dele é-lhes insuportável e consideram a sua perda como a última das infelicidades” (Tocqueville, 1988: 272-273).
A temática da classe média reveste-se, hoje, de contornos bem diferentes daqueles que assumiu nesse tempo. Ao longo do século XX nas sociedades industrializadas do mundo ocidental, a importância (política, nomeadamente) da “nova classe média assalariada”, em especial a partir da II Guerra Mundial, deu azo a inúmeras polémicas no terreno sociológico, atravessando correntes teóricas diversas, nomeadamente marxistas, funcionalistas e weberianas. Desde então, a expressão “classe média” vulgarizou-se cada vez mais mas deslocou-se do velho sentido do século XIX, que a conotava com a pequena burguesia proprietária. Além disso, convém notar, o fenómeno da “mobilidade social” (e da classe média), nunca teve na Europa o mesmo significado que nos EUA, uma sociedade bem mais individualista.
Porém, manteve-se a mesma relação directa entre o crescimento da “classe média” e a questão da “luta de classes”. Como o progresso económico (e tecnológico) parecia infindável, pensava-se que o crescimento dos assalariados white collar o seriam igualmente. No sector privado ou à sombra do Estado social o imparável reforço da classe média era a garantia da coesão social e um seguro para prevenir qualquer conflito estrutural. Quanto maior a classe média (e a mobilidade social) menor a intensidade da luta de classes. Autores como Ralf Dahrendorf, Frank Parkin, John Goldthorpe ou Pierre Bourdieu (e até o próprio Giddens) ajudaram-nos a perceber que o papel da classe média caminhava de par com múltiplas tensões, poder reivindicativo e conflitos abertos entre categorias profissionais emergentes, consolidadas e em declínio. Mais do que as oportunidades de subida para os que tivessem sucesso, a mobilidade inseria-se nos processos de recomposição da estrutura social, gerando o chamado efeito escada rolante, e de certo modo funcionando como ideologia meritocrática (processo gerador de ilusões apaziguadoras). Quando certos grupos se movem dos degraus mais baixos ou intermédios da estratificação social para os degraus acima, perdem de vista o facto de as posições superiores entretanto também se terem movido no mesmo sentido. Além disso, também o grupo de referência, ao funcionar como padrão comparativo que mede a condição social dos próprios por referência a outros grupos em situação idêntica ou ainda mais humilde (os vizinhos ou os familiares, por exemplo), tende a ampliar o sentido de privação relativa e, desse modo, a iludir o grau de proximidade, ou de progressão, na escala estratificacional entre fracções distintas dentro da classe média (Parkin, 1979).
A classe média no seu conjunto apresenta contornos dúbios porque na verdade nunca foi um grupo homogéneo. E em Portugal é ainda muitíssimo frágil e instável. No nosso país ela (ou o seu segmento assalariado) cresceu e afirmou-se a partir dos anos sessenta e muito dependente do Estado. Como já antes escrevi, a classe média portuguesa, é-o mais na aparência do que na realidade, sobretudo se atendermos a que uma parte significativa dos funcionários e empregados do sector terciário se aproximam da categoria proletária. Por exemplo, num estudo que publiquei em 1997 com José Manuel Mendes (Classes e Desigualdades Sociais em Portugal, Afrontamento) mostrámos que, segundo vários critérios estruturais, inspirados no modelo de Erik Wright) como novel de qualificações, grau de autonomia e poder de influência e propriedade, os trabalhadores que então classificámos de “proletários” eram nessa altura de cerca de 46% da força de trabalho empregada. Nos últimos anos, no quadro das políticas liberais e da crise económica vigente, fenómenos como o endividamento das famílias, o peso do trabalho precário, o desemprego e a instabilidade do mercado de trabalho, com toda a panóplia de situações de abuso de poder e de medo, atingem hoje amplos sectores da força de trabalho, incluindo a classe média.
No entanto faz ainda sentido falar do conceito de: o efeito classe média. Ou seja, para lá da existência de uma classe média “real”, pode conceber-se a presença de uma classe média “virtual”, na medida em que essa vaga e imprecisa “mancha” sociológica situada algures entre as classes dominantes e as classes trabalhadoras manuais (apesar de hoje mais enfraquecida devido ao pessimismo induzido pelo contexto de crise) com um alcance significativo na modelação das representações sociais. E essas subjectividades adquirem efeitos concretos no terreno das atitudes e comportamentos socioculturais e políticos.
- Publicada por Elísio Estanque, em Boa Sociedade, 11.1.2010
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