5 comentários:
De . a 21 de Junho de 2010 às 10:44

Saramago

Em todas as épocas há sempre muitos escritores que publicam, vendem livros e são lidos.
Poucos são porém os que depois passam o teste do tempo.

Pela qualidade, densidade, criatividade e densidade humanística da sua extensa obra, José Saramago estará seguramente entre eles, tendo um merecido lugar assegurado na história da nossa literatura.
Depois de Pessoa, ninguém como ele deixa uma marca tão profunda na literatura portuguesa.
Adeus, José.

De profundis

Fiquei muda e queda quando, ontem, à saída da homenagem que quis pessoalmente prestar a José Saramago fui interpelada pela comunicação social sobre o significado da ausência do Senhor Presidente da República. Antes de mais, por incredulidade e alguma esperança: o Presidente teria ainda oportunidade de comparecer no dia seguinte, no funeral. Depois, por não ser o local e a situação como adequados a qualquer controvérsia política.

Hoje, passado o funeral e serenamente, lamento a ausência do Presidente da República de Portugal. Que não, obviamente, a do cidadão Aníbal Cavaco Silva.
Lamento não inferior ao que me suscitam as banais explicações que vi Sua Excelência há pouco ensaiar na TV, para justificar o injustificável.
Na verdade, artifícios formais ou de veraneio pessoal não podem servir de alibi para a elisão dos deveres de representação institucional de um Chefe de Estado.

Lambo por isso as feridas de não ter sentido Portugal representado, como deveria, ao seu mais alto e insubstituível nível, na homenagem ao escritor José Saramago que, como ninguém nos últimos séculos, colocou o nosso país no mapa cultural do mundo.

PS - Quanto aos dislates do Osservatore Romano, comentários para quê? Valham-nos as intervenções dignas, inteligentes e civilizadas de alguns representantes da Igreja Católica portuguesa.

Intolerância

O selvagem ataque do Osservatore Romano a José Saramago, no dia seguinte à sua morte, mostra que o Vaticano continua a ter uma leitura puramente ideológica da literatura, esquecendo que Saramago, independentemente das suas ideias e convicções, é o grande escritor que é pela qualidade da sua escrita, pela mestria da sua linguagem e pela sua criatividade ficcional.

E mostra igualmente que o Vaticano continua tão intolerante com os não crentes como sempre foi, como se o humanismo fosse um monopólio religioso. Não podendo já mandá-los para a fogueira da Inquisição, não poupa porém no ódio nem no rancor.
Se o Vaticano julga que desse modo pode apoucar postumamente o escritor, engana-se.
Pelo contrário, há ataques que engrandecem.


De . a 21 de Junho de 2010 às 12:16
Homenagem a José Saramago

No blog O Caderno de Saramago, foi postado pela Fundação José Saramago, com a data de hoje, 18 de Junho de 2010, o pequeno texto que transcrevo a seguir, intitulado "Pensar, pensar", com a indicação de que foi extraído de uma entrevista publicada na revista do Expresso, em 11 de Outubro de 2008:

"Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma. "

Prestemos homenagem ao grande escritor, hoje desaparecido, aceitando este texto como um dos seus testamentos políticos. Mas, aceitando-o de facto. Isto é, pensando.


De . a 24 de Junho de 2010 às 11:32
Saramago visto por Graça Moura

Toda a gente sabe que não há pachorra para aturar o político Vasco Graça Moura e isso não decorre das suas opções políticas de direita mas do estilo trauliteiro que lhe obnubila completamente a inteligência mas também muitos sabem que o outro Vasco Graça Moura, o da Cultura, é uma pessoa inteligente e vasto saber e que só podemos ganhar em ouvi-lo quando fala de... cultura.
Por isso foi com gosto que li o seu artigo de opinião sobre José Saramago hoje no DN de que reproduzo o seguinte:
___________

" Para além de inúmeras reacções circunstanciais, a morte de José Saramago trouxe à baila várias questões muito interessantes. Devo dizer que fui amigo dele e prezo grande parte da sua obra, sem subscrever, como é evidente, as suas posições ideológicas e políticas. Isso nunca me impediu de tentar compreendê-lo, nem de admirá-lo naquilo que penso ser a parte mais válida do que escreveu.
............
Um outro aspecto que julgo importante é o de o romance saramaguiano ter regra geral tão pouco a ver com a narrativa proletária (salvo, evidentemente, o caso de Levantado do Chão) quanto com o chamado romance burguês e as suas várias derivas ao longo do século XX. Saramago conhecia muito bem todo o universo romanesco dos séculos XIX e XX. Soube, ele que tanto se inspirou no barroco, ir à picaresca espanhola buscar algumas notas importantes, entre elas a de um humor que levou com frequência a um ponto corrosivo, para caracterizar algumas das suas personagens, figuras e situações. Mas os cenários em que tudo isso se move parecem ter mais a ver com o reencontrar de um fio narrativo muito anterior a qualquer modelo de ficção preexistente, que faz as personagens existirem e agirem como que emergindo e consolidando-se nas próprias pregas do texto que está a ser escrito, entre o absurdo da situação e os possíveis dos seus comportamentos e das suas escolhas quanto a grandes questões da existência, que começam por aparecer de um modo quase anódino até se proporem ao leitor como avassaladoras e intimidantes.


Um escritor assim, para mais racionalista, ateu e empenhado socialmente por via do comunismo, tinha de questionar o Deus da Bíblia e de fazer uma leitura crítica dos seus atributos. Mas as investidas de Saramago contra Deus supõem, quase de certeza, uma contrapartida de aumento do coeficiente de humanidade e de justiça que ele quereria ver instaurado e praticado entre os homens. No seu caso, o problema é que, historicamente, a proposta política que defendia tinha saído furada e a um preço de sacrifício humano absolutamente incomportável. ... "

# posted by Raimundo Narciso, Puxapalavra


De . a 28 de Junho de 2010 às 12:44
JOSÉ SARAMAGO, UM COMBATENTE PELA LIBERDADE

José de Sousa Saramago nasceu na Azinhaga, Golegã, a 16 de Novembro de 1922. Foi autodidacta, romancista, poeta e dramaturgo. Segundo consta na sua biografia, “apenas” concluiu estudos secundários, dadas as dificuldades económicas familiares.

Contudo, veio a ser, na sequência da sua importância literária e intervenção humanitária de liberdade, distinguido com três Doutoramentos Honoris Causa, a saber: Doutor "Honoris Causa" pela Universidade de Turim (Itália), em 1991; Doutor "Honoris Causa" pela Universidade de Sevilha (Espanha), também, em 1991; Doutor "Honoris Causa" pela Universidade de Manchester (Inglaterra), em 1994.

Além de muitos outros prémios e honrarias, que lhe foram sendo atribuídos, em 1998 acabou por ser galardoado com o Nobel de Literatura, premio máximo que qualquer escritor sonharia alcançar.

Antes da fama, foi operário-serralheiro, tradutor e jornalista. Um comunista, militante não “controlado”, um irreverente. A militância da vida nunca a confundiu com a do partido comunista. Em cada momento, em cada circunstância, sempre soube distinguir uma da outra e, mesmo, quando uma e outra pareciam confundir-se nunca confundiu a circunstância de ser comunista com as realidades e necessidades que por vezes se lhe “impuseram” de se posicionar de modo diferente do seu próprio partido.

Libertário de pensamento, livre no agir, a voz insubmissa. Honrar a sua memória, como exemplo a seguir.

MARCADORES: cultura, pcp, saramago
Publicado por Zé Pessoa


De carta p. Avó de Saramago a 19 de Julho de 2010 às 15:39
Carta para Josefa, minha Avó (de Saramago)

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ


Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela
rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos
grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça
toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol
todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete
universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria
cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de
aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte.
Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete
vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia,
nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas
centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto
viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos
de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.
Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes
dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra
Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de
légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma
bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei
sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de
interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu
riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue,
mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o
mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era
quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, umas
coisas que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um
quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e
chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua
face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos
carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo
que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas
disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se
soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses
compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem
mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras
não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que
me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas
tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa,
para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o
silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a
tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua
adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta
pena de morrer!”.

É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.



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