Sexta-feira, 9 de Julho de 2010

(I)

   No livro ''Representação Política – O Caso Português em Perspectiva Comparada'' verificámos uma profunda insatisfação dos portugueses com o funcionamento da democracia e um cavado distanciamento entre eleitores e eleitos.

   A satisfação com o funcionamento da democracia atingiu, em 2008, o ponto mais baixo desde 1985 (cerca de 30 por cento) e está abaixo da média dos cerca de 30 países usados como comparação. O sentimento de distância dos eleitores face aos representantes revelou-se também muito elevado e acima da média dos 30 países. Não é de crer que a situação tenha mudado muito desde 2008. Numa altura em que o PSD parece estar prestes a apresentar o seu projecto de revisão constitucional e em que um dos elementos é a reforma do sistema político, designadamente com a proposta do “voto preferencial” (PÚBLICO, 2/7/2010; Visão, 1/7/2010), vale a pena reflectir sobre em que medida esta solução pode ajudar a reconciliar os portugueses com a política. De caminho, aproveito para responder a vários leitores (subscritores da petição defendendo uma redução de deputados de 230 para 180) que me escreveram pessoalmente (ou em cartas a este jornal) por causa do meu artigo de 31/5/2010 (“A democracia debaixo de fogo”) onde eu abertamente contestava a argumentação dos peticionários.

 

   Antes de apresentar as vantagens do voto preferencial, recordemos o 'status quo' (“listas fechadas e bloqueadas”) e os problemas associados.

   Quando votamos podemos apenas pôr uma cruzinha num dos partidos e, por isso, mesmo que estejamos profundamente desagradados com a performance de alguns deputados nada podemos fazer a não ser mudar de partido. Este sistema foi escolhido (e bem) para fortalecer os partidos.

   Mas hoje os partidos estão consolidados e sobressaem os problemas.

   Primeiro, os deputados preocupam-se sobretudo em agradar às direcções partidárias, subalternizando os eleitores, pois a sua reeleição depende da posição nas listas.

   Segundo, os eleitores têm muita dificuldade em saber quem são os deputados que os representam e, sobretudo, estão impossibilitados de os responsabilizar.

   O “voto preferencial”, que também propusemos num livro publicado em 2008 (Para uma melhoria da representação política – a reforma do sistema eleitoral), pode precisamente ajudar a reconciliar os portugueses com a política: dando mais poder aos eleitores na escolha dos deputados e, assim, criando incentivos para que estes se preocupem mais com aqueles. Mais, esta via nada tem que ver com a redução do número de deputados. Pelo contrário, tal redução é contraditória com o voto preferencial, como veremos.

   (II)

   Claro que uma reforma deve ser uma mudança gradual: para que os actores possam adaptar-se devidamente a ela e para que se possam maximizar as vantagens e minimizar os inconvenientes das transformações.

   Por isso, e porque não faz sentido retirar todo o poder às direcções partidárias e transferi-lo todo para os eleitores, designadamente porque os partidos devem ter uma palavra a dizer na composição das bancadas parlamentares (para assegurar a presença de determinadas valências técnicas e políticas), propusemos um sistema com dois conjuntos de círculos:

. um nacional onde se aplicam as “listas fechadas e bloqueadas” e que tem também funções de manutenção da proporcionalidade;

. (e um com) pequenos círculos regionais (6 a 10 lugares) onde então se aplicaria o voto preferencial.

   Neste particular, a redução do número de deputados (que nenhuma comparação internacional justifica) seria contraproducente:

ou obrigaria a reduzir o círculo nacional, reduzindo a proporcionalidade e o papel das direcções partidárias;

ou obrigaria a reduzir mais os círculos regionais, prejudicando a representação territorial e a possibilidade de os pequenos partidos elegerem aí deputados.

   Além disso, o voto preferencial só pode ser aplicado em pequenos círculos:

para os eleitores terem capacidade de processar informação sobre os candidatos em disputa e para que a medida seja logisticamente exequível (os boletins passariam a conter os nomes dos candidatos efectivos de todos os partidos). Por isso é que a ideia de aplicar o voto preferencial num círculo único com 100 deputados é completamente descabida.

 

   Resumindo, o voto preferencial pode dar um importante contributo para a reconciliação dos portugueses com a política.

   Mas há outros:

. Primeiro, é crucial preservar a proporcionalidade: ela é a condição do pluralismo multipartidário que temos e, por essa via, um esteio essencial da participação política (se comprimissemos a representação dos pequenos muitos dos seus eleitores passariam a abster-se: veja-se a Grã Bretanha) e da clareza das alternativas (sem os pequenos a competição passaria a focalizar-se só no centro).

. Segundo, é preciso reforçar a governabilidade sem beliscar a proporcionalidade (moção de censura construtiva, orçamento construtivo, incentivos institucionais à cooperação entre os partidos): as pessoas querem que os partidos se entendam, como prova o bom desempenho do PSD apesar da cooperação com o PS. Por último, é preciso que os políticos mudem as suas atitudes e comportamentos para que os eleitores possam encarar o Estado como uma pessoa de bem.

 

   Por exemplo, o PS está propor a privatização de 17 empresas públicas (muitas delas estratégicas e lucrativas) sem ter dito nada sobre o assunto na campanha: uma subversão da Constituição material (do governo representativo). E não é aceitável fazer-se um acordo sobre a reforma das pensões e na legislatura seguinte voltar com a palavra atrás. Mais: nenhuma estabilização financeira legitima a subversão do principio da não retroactividade das leis. Se os representantes políticos querem ser tidos como pessoas de bem têm que comportar-se como tal, mas para isso não é preciso nenhuma mudança institucional.

 

Publicado originalmente no Público de 5/7/2010. Publicada por André Freire em 7.7.10


MARCADORES: ,

Publicado por Xa2 às 00:07 | link do post | comentar

5 comentários:
De Paulo Morais a 9 de Julho de 2010 às 01:18
A prosmicuidade entre política e negócios é regra. A Assembleia da República já nem parece um parlamento democrático. É mais um escritório de representações.


De Paulo Morais a 9 de Julho de 2010 às 01:20
promiscuidade


De Paulo Morais a 10 de Julho de 2010 às 21:48
Quem é que anda aqui a falar em meu nome?

http://jn.sapo.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=1612202&opiniao=Paulo%20Morais


De Zé das Esquinas o Lisboeta a 9 de Julho de 2010 às 09:56
Na mesma semana que o governo usa na PT uma ferramenta de legalidade duvidosa ' em política da UE chamada de golden share , baseado no facto de ser uma empresa de 'interesse estratégico' (?) para o país.... vem o ministro das finanças reiterar a 'ideia' de alienar a GALP e a EDP e outras empresas públicas algumas sim de interesse verdadeiramente estratégico para a economia política nacional.
Só pode ser brincadeira não? E de mau gosto. Então o tal 'interesse estratégico' que fez este o governo usar os seus privilégios especiais na PT? Estas empresas não o têm? E depois como vai ser no futuro perante uma OPA hostil à GALP ou à EDP? Repete-se a história ou, dessa vez já não haverá golden share porque era ilegal face às regras da UE e tadinhos ' de nós ficamos a mão de quaisquer outros 'espanhóis'...
E, mais uma vez, não há culpados, só nós, os Zés Trouxas...


De Zé das Esquinas o Lisboeta a 9 de Julho de 2010 às 11:48
E ainda, o Estado tem de reassumir o seu papel no sistema financeiro. Pôr as finanças ao serviço da economia e a economia ao serviço do cidadão.
Fazer que os Bancos Públicos se comportem como bancos públicos e que os Mutualistas, como mutualistas. E isso através de normas que os distingam e de uma verdadeira regulação.
Porque convém não esquecer que esta crise que hoje atravessamos, que é social e económica, começou por o sistema financeiro mundial ser omnipresente e estar acima do poder político democrático Por se ser democrata e acreditar na economia de mercado, não deveria ter descambado na entrega cega e absoluta do poder nos bancos e no alheamento e desresponsabilização da política dos estados.
Se isso foi feito de boa fé, por interesses particulares ou simplesmente estupidez natural, já é outra estórias ...


Comentar post

MARCADORES

administração pública

alternativas

ambiente

análise

austeridade

autarquias

banca

bancocracia

bancos

bangsters

capitalismo

cavaco silva

cidadania

classe média

comunicação social

corrupção

crime

crise

crise?

cultura

democracia

desemprego

desgoverno

desigualdade

direita

direitos

direitos humanos

ditadura

dívida

economia

educação

eleições

empresas

esquerda

estado

estado social

estado-capturado

euro

europa

exploração

fascismo

finança

fisco

globalização

governo

grécia

humor

impostos

interesses obscuros

internacional

jornalismo

justiça

legislação

legislativas

liberdade

lisboa

lobbies

manifestação

manipulação

medo

mercados

mfl

mídia

multinacionais

neoliberal

offshores

oligarquia

orçamento

parlamento

partido socialista

partidos

pobreza

poder

política

politica

políticos

portugal

precariedade

presidente da república

privados

privatização

privatizações

propaganda

ps

psd

público

saúde

segurança

sindicalismo

soberania

sociedade

sócrates

solidariedade

trabalhadores

trabalho

transnacionais

transparência

troika

união europeia

valores

todas as tags

ARQUIVO

Janeiro 2022

Novembro 2019

Junho 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

RSS