Os estudos de opinião que têm sido publicados não conseguem prever com exactidão a percentagem de abstenção para a eleição presidencial. No entanto, espera-se que seja alta. Hoje, no Público, é perguntado a várias personalidades o que acharam da campanha e se esta mudou o seu sentido de voto. Há duas correntes:
os que vão votar mas insistem na pobreza da campanha;
e os que não vão votar, abraçando o niilismo abstencionista por entre a amargura (Vasco Pulido Valente) e a desilusão (José Gil).
São escolhas. No fim de contas, esta vai ser apenas mais uma eleição, para um cargo que confere um poder mais simbólico do que real, e seria difícil encontrar melhor ocasião para expressar descontentamento em relação à situação política actual.
Mas será esta apenas mais uma eleição? Vejamos:
a crise em que o país se encontra mergulhado; a pressão internacional para que sejam tomadas medidas de austeridade duríssimas; a descredibilização do Governo que foi eleito há menos de um ano.
Neste panorama, grande parte da esquerda decidiu enveredar pelo apelo à abstenção, chegando muitos a mostrar mais empenhamento do que mostrariam caso tivessem um candidato em quem votar. Seria comovente, este empenhamento, se não fosse pateticamente sectarista.
Todo e qualquer voto é sempre um voto útil.
Um voto esclarecido é um voto que encontrou defeitos num candidato ou num partido, mas acaba por se decidir pelo menor dos males. Aquele que tenha lido o programa de um candidato ou de um partido a qualquer eleição e concorde com tudo, do princípio ao fim, que atire a primeira pedra. Não há unanimidades (sim, a unanimidade, como disse o grande reaccionário Nelson Rodrigues, é burra) nem gente perfeita; e concedo que um político, qualquer que seja ele, é ainda menos perfeito.
Da mesma maneira, a decisão de não ir depositar o voto na urna pode ser tão útil como o voto no candidato - discordando de todos os candidatos, o abstencionista deixa-se ficar no calor da decisão abstencionista (na realidade, uma não-decisão), renegando o maior bem que uma democracia tem para oferecer: o voto. Um abstencionista - acreditem que sei do que falo, passei por cima de muita eleição - encontra conforto em várias coisas - na atitude de protesto, no gesto que julga de combate, na crença de que o voto é na verdade ilusório, e que nada poderá mudar.
Mas a verdade é que, na maior parte das vezes, o único real conforto é o que sente ao não sair de casa, ao preferir ir à praia, o conforto burguês de quem delega nos outros decisões que devem passar por todos.
Claro que há aquela minoria que diz ser contra este sistema; estão no seu direito de não votar, embora eu ache que, nesse caso, seria mais coerente a recusa da cidadania e de todas as benesses que esta traz. Uma vez mais, o conforto fala mais alto; e é muito fácil para o ser humano convencer-se de que tudo o que faz está correcto - está nos tomos de psicologia. Mesmo que o bom senso indique precisamente o contrário.
O único voto de protesto coerente é o voto em branco - e o nulo anda muito perto. Quem vota em branco aceitará o sistema político do país onde vive - caso contrário pediria a recusa de nacionalidade - mas recusa os candidatos ou partidos que vão a concurso. Uma escolha deste tipo seria, claro, o menor dos males. O votante em branco não se interessa por quem o governa ou preside ao país, é-lhe indiferente. E por isso tem de aceitar qualquer decisão que o poder tome. Para que não possa ser acusado de incoerência. O voto de protesto é coerente, mas será sensato? E até que ponto é produtivo?
O outro caminho que resta - o voto num dos candidatos - é tão útil como o voto em branco ou o voto nulo (mas mais sensato do que a abstenção, porque menos hipócrita). Não há políticos heróis, porque o herói apenas nasce quando o Homem morre. Mas a utilidade do voto reside noutra coisa:
o que será melhor, no momento em que votamos, para as nossas vidas?
Regressando a estas eleições, recordemos o que está em causa: a reeleição de um candidato que baseou toda a sua imagem numa pose de estadista credível, sério, competente e honesto. Cavaco, durante anos, alimentou esta imagem, viveu disto. Daí os seus silêncios, as suas ausências. A imagem de Cavaco, construída fora de palco, dependeu sempre da bondade da comunicação social. Nunca foi escrutinado, questionado, pressionado. Os seus apaniguados, presentes em todos os palanques mediáticos, foram criando uma aura mítica à sua volta, enquanto os seus amigos iam preenchendo lugares em organismos públicos, fundando empresas que bebiam da teta estatal, criando grupos económicos tão poderosos que se tornaram imunes ao poder político. E claro, os amigos mais próximos, os do coração, entretiveram-se a fundar um banco, o BPN, que serviu sobretudo para o rápido enriquecimento deles próprios.
E Cavaco, na sombra de um interregno na política, foi também beneficiando deste banco laranja, sem que nunca fosse posta em causa a tal imagem séria construída ao longo de anos. Nesta campanha, tudo parece ter desabado. Por isso, é natural que a clique cavaquista que colonizou os painéis do comentarismo televisivo e jornalesco ache que foi muito fraca, a campanha. A táctica de desvalorizar o que é verdadeiramente importante numa eleição onde, não se esqueça, vamos votar numa pessoa, e não num programa partidário, vem em todas as sebentas. Para que quem vota não se interesse, concorde, não pense na importância do simples gesto de votar.
O que aí vem - o embate das medidas de austeridade que toda a gente vai sentir - é demasiado grave para o alheamento. O que aí pode vir - a eventual vitória de Cavaco; a provável dissolução da Assembleia; a possível vitória do PSD nas legislativas; Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro - é a concretização do mais perfeito sonho molhado da direita liberal do nossa país:
medidas de austeridade ainda mais duras; o desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, num processo regressivo que imitará o que sucedeu recentemente nos EUA, mas no sentido contrário; a prometida (ameaçada?) revisão constitucional, o que significará a derrota definitiva dos ideais de Abril; uma revisão laboral que penalizará ainda mais os trabalhadores, caminhando para a flexibilização total do mercado de trabalho, de modo a que a economia possa competir com os países emergentes, o que na prática representará uma regressão de quarenta anos; a privatização de todas as empresas públicas que ainda existem, com tudo o que isto tem de penalizante, tanto para a economia do país como para todos os cidadãos.
Poderá ser de outra maneira? A única via de saída, sinceramente, será que não aconteça a tal tríade perigosa que Sá-Carneiro sonhou para o seu PPD: uma maioria, um governo, um presidente. E podemos começar por não eleger Cavaco, o patrocinador do rumo errado, omnipresente na luz ou na sombra, que o país levou nos últimos vinte anos.
Votar, claro, é o mais poderoso instrumento que temos para evitar esta derrocada. Afinal, será muito mais cómodo para todos ir depositar o voto.
Sérgio Lavos [Arrastão]
A imagem é de Gui Castro Felga
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