Segunda-feira, 7 de Fevereiro de 2011

O fantasma da diminuição do número de deputados é um dos fetiches mais perversos da vulgata do populismo de direita. Mas o que é mais estranho é que em diversos pontos da área socialista se levantem vozes também aliciadas pelo referido fantasma.

Sob pena de se resvalar para um concurso de palpites, em que será grande o risco de uma acumulação de dislates, não é possível analisar o caso português sem o comparar com o de outros países, nomeadamente com outros países europeus.

Pode ajudar muito essa reflexão, o importante estudo, que sustenta uma proposta de reforma do sistema eleitoral, da responsabilidade de André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, publicado pela Sextante Editora em 2008 e intitulado “Para uma melhoria da representação política”. Não pretendo comentar aqui esse trabalho, indispensável para quem quiser ter uma opinião sustentada sobre a temática em questão, apenas querendo chamar a atenção para a página 48, onde se pode ver um quadro comparativo da relação entre o número de deputados de cada país e a respectiva população, de um conjunto de trinta países, onde se incluem todos os países de União Europeia, acrescidos de um pequeno número dos que ficam de fora.

No quadro, considera-se para os países com uma única câmara o número dos seus deputados, para os países com duas câmaras a soma dos membros das duas câmaras. A maior parte dos dados reportam-se aos anos de 2005 a 2007, sendo subdivididos os trinta países em três grupos, em função da população de cada um. No primeiro grupo, situam-se os sete países com mais população; no segundo, que abrange Portugal, os dez países com um número de habitantes intermédio; no terceiro, os treze países menos povoados.

Se considerarmos em conjunto os 30 países, há nove países que têm um número de deputados por habitante inferior a Portugal, entre os quais se situam os sete países do primeiro grupo, mas há vinte países com um número de deputados por habitante superior ao de Portugal. Isto mostra que, em termos comparados, é uma lenda mistificatória alegar que no nosso país há um excesso de deputados. Aliás, se tivermos em conta que, como muitos especialistas sublinham, há uma tendência natural e objectiva para que nos países com elevada população a relação entre o número de habitantes e o número de deputados diminua, quanto mais não seja por razões funcionais, mais se acentua o carácter mistificatório dessa lenda. Aliás, entre os dez países do escalão intermédio, só a Holanda e a Bélgica têm menos deputados que nós, em termos relativos.

Revelando-nos esta comparação que a dimensão do nosso parlamento não está mal calibrada em termos relativos, ela milita, por si só, a favor da conveniência de não se diminuir nem aumentar o número de deputados, que aliás é hoje menor do que o foi nas primeiras Assembleias da República posteriores a 1974.

Mas alguns outros argumentos militam no mesmo sentido, desde logo o do agravamento das distorções de proporcionalidade que existem no sistema actual. Não só os partidos de menor dimensão correm o risco de se verem mais severamente retraídos do que os dois maiores, tornando-se a paisagem política artificialmente menos variegada, mas também o PSD alarga a sua vantagem em face do PS, no que diz respeito ao limiar percentual que cada um deles precisa atingir para conseguir maioria absoluta de deputados. Pode dizer-se que neste último caso o desfasamento entre os dois partidos é curto, mas é suficiente para ter um enorme significado político em termos práticos. Compreenderemos isso, se nos lembrarmos que, se os votos que obteve o PS com Guterres tivessem sido obtidos na altura pelo PSD, este partido teria chegado à maioria absoluta nas duas vezes, mas o PS não chegou lá em nenhuma. Quanto menor for o número de deputados mais se alarga esse pequeno desfasamento; o que talvez ajude a compreender por que razão o PSD procura com tanta sofreguidão e insistência a diminuição do número de deputados.

Ora, não achando eu que o PS deva subordinar a sua posição, quanto ao número de deputados, a uma expectativa de quaisquer vantagens, muito menos acho que o PS deva consentir que o PSD o faça, em seu detrimento. E o faça, não para corrigir qualquer injustiça que no sistema actual o prejudique, mas para alargar um favorecimento com que já o sistema actual o presenteia. Também por isto, quando vejo um dirigente do PS advogar a diminuição do número de deputados, numa dócil obediência à mais rasteira agenda da direita populista, fico na dúvida sobre se está apenas mal informado ou se foi possuído por alguma tontura política.

Por outro lado, a diminuição do número deputados, que só pode fazer sentido se for mais do que um simples ajustamento numérico de três ou quatro, iria acentuar, nos distritos menos povoados, o deslizamento para uma menor proporcionalidade a que a evolução demográfica tem vindo a conduzir.

Por último, não pretendendo ser exaustivo na argumentação, acho que se deve ter em conta que um parlamento para além de ser um órgão de soberania com funções específicas de natureza política, constitucionalmente fixadas, que envolvem naturalmente tarefas que devem ser bem desempenhadas, é também uma instância que exprime e representa a diversidade política de um povo e que outorga aos governos a legitimidade democrática; ou seja, é a fonte única (no caso português) e primária da legitimidade democrática dos governos. A essa expressão e a essa representação não é indiferente o número de deputados, nem a relação entre o seu número e o número de habitantes de um país. Abaixo de um certo limiar não podem deixar de se ressentir a respectiva qualidade. E para determinar esse limiar não pode deixar de se ter em conta a análise comparatística acima esboçada.

O único argumento concreto é o da poupança. Mas a diminuição de despesas em termos relativos é tão escassa que seria estulto atribuir-lhe relevo como condicionante das escolhas quanto à questão em causa. Aliás, seria de uma enorme irracionalidade político-institucional, desqualificar o cerne, o lugar central da democracia em nome de uma pequena poupança, que poderia tornar inúteis muitas outras despesas em zonas políticas menos nobres ou mais periféricas, zonas essas que elas sim devem ser as que mereçam o reexame que possa conduzir a desejadas contenções de gastos. Repito, tentar essas contenções no número de deputados é pura demagogia simbólica, simples rendição, discreta mas efectiva, ao ranço mais desprezível dos ódios à democracia cultivados pelos sectores mais conservadores da nossa sociedade.

Em suma, faz bem o PS ao recusar firmemente a diminuição do número de deputados, não cedendo nem à sofreguidão interesseira do PSD, nem à vozearia rasteira do populismo mediático que odeia salazarentemente tudo o que cheira a órgãos eleitos.

De facto, deverão ser outras as suas preocupações do PS neste campo, tais como:

1º- instituir as eleições primárias, como método de escolha dos candidatos do PS;

2º- garantir um leque diversificado e ambicioso de competências políticas, técnica e culturais no seu grupo parlamentar;

3º- procurar fazer com que a escolha dos deputados do PS recaia sobre pessoas cuja indicação prestigie mais o PS do que a elas próprias.

Rui Namorado [O Grande Zoo]



Publicado por JL às 00:22 | link do post | comentar

6 comentários:
De Zé T. a 7 de Fevereiro de 2011 às 12:58
DEPUTADOS ... verdadeiramente independentes/ representantes, ''yes-men'' ou ao serviço de quem ?

Bom post de Rui Namorado, especialmente pelas 3 preocupações que elenca no final - isso sim, completamentamente de acordo.

Quanto ao nº de Deputados (e deixando de lado os problemas relativos à sua Qualidade? e escolha?...), este não pode ser visto sem se analisar o método e os círculos eleitorais.
E quanto aos círculos existentes, os distritos são uma 'aberração' que só 'liga' com a outra aberração que que são os ''governos civis''.
-Porque não substituir os circulos/governos distritais pelas regiões administrativas (Norte, Centro, LVT, Alentejo, Algarve, este é =) ? ou pelas NUTS equivalentes às sub-regiões.?
-Porque não utilizar um círculo único (nacional)? só ou combinado com círculos regionais (100 deputados para o nacional e 100 repartidos pelas regiões em função da sua população)?

Mas, mais importante ainda seria
- instituir mais democracia e TRANSPARÊNCIA intra-partidos,
- fazer eleições primárias no PS (e PSD...) para se escolherem os candidatos a deputados...
- aumentar o conjunto de incompatibilidades com o cargo de deputado...
- podendo aumentar-se o seu vencimento, mas reduzindo regalias (individuais, da chefia do grupo, da presidência da AR, ...).

E são os DEPUTADOS ...
- verdadeiramente independentes/ representantes do povo (globalmente ou dos eleitores do seu círculo)?,
- são ''yes-men'' do líder de bancada ? ou
- estão ao serviço de quem ? (lhes promete uma boa 'prebenda', durante ou após mandato, a si e ou aos seus familiares) ?


De . a 7 de Fevereiro de 2011 às 13:59
Reduzir o Número de Deputados

Quem já foi deputado sabe que os 230 atuais deputados são excessivos.

Nos diversos grupos parlamentares é tudo decidido pelo respectivo líder do grupo
que sabe de tudo desde economia à justiça, passando pela defesa, agricultura, finanças, política externa, etc.
Tem alguns adjuntos que de vez em quando têm o direito de usar da palavra, mas raramente e só quando não há filmagens televisivas.
Nas comissões também só pontua um deputado como temos visto nos inquéritos ao BP, BPN, etc.
O maior receio de um líder de grupo parlamentar é que algum deputado se evidencie com uma boa ideia ou apresenta algo de válido para o País.

À grande maioria dos deputados pede-se para não incomodar, não propor qualquer projeto de lei e não fazer ondas, principalmente quando se faz parte de um partido de governo.
Mas mesmo na oposição sucede quase o mesmo.
Lá da direção do partido vem tudo e o líder da bancada faz as vezes de grupo parlamentar.

No fundo, bastava haver um líder com direito a um certo número de votos parlamentares em função dos resultados eleitorais e, eventualmente, alguns adjuntos para andarem pelo País a contactarem as populações.

Por isso, a proposta do Lacão tem sentido, mesmo que a redução seja só para os 180 deputados.

Claro, na política como na vida não há ponto sem nó e Lacão está no fundo a dizer aos pequenos partidos que se em Abril ou Maio se unirem ao PSD para votarem favoravelmente uma Moção de Censura podem ter um PS favorável a uma redução de deputados que os transforme em grupos de 4 ou 5 representantes na AR.

Jerónimo de Sousa já declarou abertamente que votará ao lado do PSD para deitar o PS abaixo.
Sendo assim, porque razão não poderá o PS votar também ao lado do PSD para reduzir o número de deputados com a vantagem de poupar uma pipa de massa, dado que 50 deputados ainda custam muito dinheiro ao contribuinte.
Não há pois momento melhor que fazer a vontade ao partido da direita para que alcance uma esmagadora maioria com 40% ou mais de votos.
A alternativa PS será também mais fácil em termos de maioria absoluta.

Publicado por DD


De Zé T. a 9 de Fevereiro de 2011 às 10:02
Bom post. ( de JL : « Menos deputados, melhor democracia? -por R.Barbosa no JN»)
Concordo com quase tudo, da interligação das questões, da argumentação às propostas:
- menos deputados, mais qualidade e participação ''não-de-rebanho'' limitando a «disciplina partidária» apenas à votação do orçamento e moção de confiança;
- diversidade e representação dos pequenos partidos; círculos eleitorais diferentes (um nacional com pelo menos metade dos assentos);
- necessidade de integrar/ simplificar/ reduzir e fazer melhorias governativas-administrativas centrais regionais/ desconcentradas municipais e freguesiais

Mas DISCORDO da «criação de uma plataforma intermédia, as REGIÕES» (como entidades políticas, autónomas, com parlamentos e governos, ...) -- essa é uma FALSA panaceia (embora compreensível quando expressa pelos cidadãos longe do poder/es e que não sentem as suas terras e gentes a ter uma melhor qualidade de vida.) -- que, em vez de melhorar,
só AGRAVARÁ custos, trazendo mais complexidade e burocracia ao sistema (mais um nível de co-in-má-decisão a juntar aos níveis: freguesia, município, nacional, UEuropeia => 5 !!! quando para ser eficiente deveriam ser apenas 3 níveis !! : município, nacional, Europeu confederado),
criando mais ditadorzinhos/ caciques clientelismo e corrupção, e
menos democracia e menos liberdade aos cidadãos dessas 'regiões' e do país em geral,
o qual já é pequeno e todo ele considerado de facto apenas + uma região da Europa.


De Zé das Esquinas, o Lisboeta a 7 de Fevereiro de 2011 às 14:25
O Rui Namorado estava inspirado (deve ser do seu dia ser já no próximo domingo) e deve também estar à espera que o pai Natal traga os presentes que tem estado à espera...
Os actuais dirigentesdo PS vão fazer isso mesmo por iniciativa própria e para fazer a vontade ao Rui...
É tão certo como os ditadores passarem a ser democratas quando o povo se revolta...
Vou-me sentar ali ao fundo à espera que isso aconteça, tá bem?


De Só vilanagem a 7 de Fevereiro de 2011 às 15:49
Esta gente é toda liberalista, andam todos à babugem, agora que o barco já mete água por todo lado é velos virem a terreiro dizer mal uns dos outros.
Não foram capazes de arrumar a casa vão ter de levar com outros coelho de outros partidos que são iguais aos seus (deles/as) próprios.
Só vilanagem ...
Claro que osBoys, girls e respectivas clientelas nunca viram nem verão algum dia, com bons olhos qualquer redução do numero e das regalias dessa gente que até para beber água da torneira se acha fina demais.


De DD a 7 de Fevereiro de 2011 às 23:03
É esclarecedora a leitura do livro "Sociedades Contemporâneas - Reflexividade e Ação" da Biblioteca das Ciências Sociais. Aí o professor sueco T. R. Burns explica como os parlamentos e governos são cada vez mais ultrapassados por corporações de especialistas com interesses mesquinhos e grupos pretensamente neutros, nomeadamente ONG, que com grande conhecimento de situações encostam os políticos à parede.
Um parlamento mais pequeno, mas com um maior apoios de funcionários especialistas pode elaborar excelentes leis, regulamentos e diretivas que estão fora do conhecimento dos deputados que chegam a um parlamento pela via do acaso das votações locais.
Experimentei isso na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que utiliza bons técnicos que permitem aos deputados fazer um bom trabalho de ligação entre a produção de decisões e as populações, governos nacionais ou organismos internacionais.
Veja-se como quase ninguém em Portugal e nos países da Zona Euro consegue compreender os chamados dois pilares da emissão de moeda por parte do Banco Central Europeu que é algo totalmente opaco, mas tem tudo a ver com a vida de cada um dos 330 milhões de mulheres e homens que utilizam o Euro.


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