HAVERÁ FUTURO PARA A SOCIAL-DEMOCRACIA?
«Haverá futuro para a social-democracia*, entendida como uma forma de organização política que atribui ao estado consideráveis responsabilidades na área social ?
Durante décadas, ela foi tão consensual no Ocidente que a questão nem se colocava; mas, nos últimos tempos, esse estatuto foi algo abalado.
Diz-se, por exemplo, que o estado social pressupõe uma carga fiscal incomportável, que a presente debilidade financeira dos estados impõe uma urgente inversão de rumo, que o envelhecimento da população tornou inviável o sistema de pensões, que o apoio aos desempregados prejudica a competitividade, que sairia mais barato transferir para o sector privado a saúde e a educação e que os poderes públicos deveriam concentrar-se nas suas funções essenciais de defesa e segurança.
O argumento económico contra o estado social não é, porém, muito forte. O Sistema Nacional de Saúde britânico surgiu quando o Reino Unido estava arruinado, não numa era de prosperidade - e o mesmo pode ser dito do ''New Deal'' americano. Os estados assumiram amplas funções sociais quando o seu rendimento per capita era bem menos de metade do actual, não se entendendo que nações muito mais prósperas não possam assegurá-las. Depois de um período inicial de rápido crescimento, o peso das despesas sociais no produto estabilizou ou reduziu-se mesmo.
As soluções para fazer face ao envelhecimento das populações são politicamente difíceis, mas tecnicamente triviais. Por fim, a experiência demonstra que a provisão privada de serviços de saúde, ensino e transportes é, regra geral, mais cara e pior que a pública.
A sensação que fica do actual debate é que a animosidade contra a social-democracia se estriba menos em argumentos sólidos do que em preconceitos, indiferenças, recriminações e ódios sociais que não ousam dizer o seu nome.
Quais serão então os problemas reais que ameaçam a sobrevivência do Estado Social ?
- O primeiro reside na frequente captura dos serviços sociais pelos agentes envolvidos na sua prestação, degradando-os e encarecendo-os.
Na prática, é como se as escolas públicas estivessem ao serviço dos professores; os comboios, ao dos maquinistas; e os hospitais, ao do pessoal hospitalar. Naturalmente, isso reduz o apreço do cidadão pelos serviços sociais, ao constatarem que a retórica dos direitos foi apropriada por egoístas corporações profissionais.
- O segundo resulta de uma parte crescente dos beneficiários mais pobres serem estrangeiros ou percebidos como tal - por vezes de outras etnias ou religiões - donde decorre uma menor identificação com os problemas dos destinatários da ajuda, tanto mais suspeitos de parasitismo quanto mais distinta for a sua cultura de origem. Recorrendo à elegante linguagem do Dr. Portas, os "ciganos do Rendimento Mínimo" são olhados como oportunistas que "comem os nossos impostos".
- Em terceiro lugar, vivemos hoje em sociedades tribalizadas e fragmentadas, em que se diluíram sensivelmente não só o sentido de grupo social como mesmo o de nação. Ora a criação de sistemas de solidariedade públicos estribou-se num sentido de identidade partilhada envolvendo cidadãos com cultura e valores comuns, agora postos em causa. As pessoas hoje mobilizam-se para exigir o comboio do Tua, salvar o lince da Malcata ou apoiar uma consumidora maltratada pela Ensitel, mas desvalorizam a importância do voto e desinteressam-se de grandes causas nacionais.
Muito mais do que qualquer imaginária crise de sustentabilidade são essas circunstâncias que contribuem para minar o sentimento de solidariedade, encolher a base social de apoio do estado social e questionar a sua legitimidade.
No seu último livro ("Ill Fares the Land", em português "Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos"), Tony Judt conclui que só a recordação de como eram cruéis as nossas sociedades antes da emergência da social-democracia permitirá impedir o seu desmantelamento. Mas é provável que uma atitude nostálgica, não enraizada no presente, a faça parecer ainda mais obsoleta. Em vez de contemplarmos a social-democracia como um paraíso perdido, talvez devêssemos antes adoptar uma postura crítica orientada para a sua reforma.(... do sistema partidário-eleitoral, da governação, economia e valores sociais)
Convém recordar que a estatização da solidariedade, antes a cargo das famílias ou das instituições de socorro mútuo, veio excluir os cidadãos da sua gestão quotidiana e liquidar o instinto de cooperação. A universalidade transformou a protecção social num mecanismo automático de distribuição de benesses cujo funcionamento e custos não são entendidos pelas pessoas comuns. A generosidade foi superada pela reivindicação de direitos abstractos. Ora nada disto é bom.
O grande problema do estado social não é talvez a falta de dinheiro, mas a alienação dos cidadãos em relação aos seus propósitos e funcionamento - logo, é por aí que se deverá começar.
A boa notícia é que as tecnologias digitais disponibilizam-nos hoje instrumentos de cooperação que facilitam o envolvimento dos cidadãos na determinação dos objectivos dos programas sociais, na busca de soluções alternativas, na avaliação e selecção de projectos alternativos ou mesmo na co-criação de serviços de melhor qualidade. No decurso desse processo conseguiremos porventura tornar o estado mais democrático, empenhar os cidadãos na produção cooperativa de serviços públicos e, quem sabe, reinventar a social-democracia. » [Jornal de Negócios , João Pinto e Castro]
( * «social-democracia» é um conceito e prática equivalente, na Europa ocidental, ao ideal e prática tradicional dos partidos trabalhistas, socialistas e sociais-democratas, mas não ao do PSD português ou ao do trabalhista-blair-3ªvia, ... )
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