Aldrabices dos donos
Dizem os bancos que as suas dificuldades são devidas à dívida soberana, ao malvado Estado. Quem é que os obrigou a comprar dívida soberana, beneficiando das diferenças de juros face ao BCE? Mas isto nem sequer é rigoroso: a sua muito recente fragilidade financeira deve-se sobretudo à fragilidade das famílias e empresas geradas por uma austeridade que os banqueiros exigiram, mas que só gera aumentos do crédito mal parado, insolvências. Isto para não falar da forma, cada vez mais clara, como os bancos usaram e abusaram da assimetria de poder e de “literacia financeira” na sua relação com quem se dirige aos seus balcões, perante a complacência de reguladores. Entretanto, sigamos os conselhos dos Bessas desta vida – cortar ainda mais nos rendimentos – e veremos o que acontece.
Mas as aldrabices de financeiros pouco recomendáveis não têm fim: ontem Ricardo Salgado, em entrevista a Pedro Santos Guerreiro do Negócios, declarava, entre outros dislates interesseiros, que a banca estava a ajudar o Estado com as transferências dos fundos de pensões para a segurança social, que assim contribuem para diminuir o défice. A banca alivia-se das suas responsabilidades futuras, mostrando como a gestão privada das pensões não é a solução de que precisamos, transferindo-as para o Estado e ainda chama a esta transferência de custos ajuda ao Estado. Estamos perante os mais eficazes operacionais políticos da economia portuguesa, um sector que sabe bem como capturar o Estado e monopolizar o debate para fazer valer os seus interesses.
Por isso, não sei se hei-de rir ou chorar quando Pedro Santos Guerreiro associa a tímida presença do Estado à entrada da porca da política na banca. Isto num sector económico intrinsecamente político, um sector que tem comandado a economia política nacional e que continuará a comandar se depender deste governo. Esta suposta tensão com o governo só serve para fazer passar a socialização dos prejuízos em curso. Pedro Santos Guerreiro usa Vara, um personagem quase irrelevante, como metáfora do Estado, só para distrair, como se a cortina de fumo não fosse já densa. Por cada Vara, eu tenho um Oliveira e Costa para a troca. E conhecerá Pedro Santos Guerreiro actores políticos mais relevantes do que Ulrich ou Salgado? E se o público fosse constituído só por Varas, por que é os accionistas do BCP os foram buscar à Caixa? E como poderia funcionar uma banca que acaba sempre por depender do Estado, se este fosse composto só por Varas?
As políticas de resposta à crise têm-se limitado até agora a fazer circular a dívida de mão em mão, sem se decidirem a atacar o fundo do problema, que é este: não há nenhuma forma de voltarmos a ter crescimento económico duradouro enquanto se persistir em exigir que a colossal dívida acumulada a nível mundial seja integralmente paga, especialmente quando, não sendo questionadas as políticas mercantilistas da China e da Alemanha que se encontram na sua origem, ela não pára de crescer.
Na antiga Lei de Moisés, a cada meio século era decretado um Jubileu de reconciliação entre os homens, remissão dos pecados e perdão universal: os escravos e os prisioneiros eram libertados e as dívidas eram anuladas. Mas o perdão das dívidas, mesmo que parcial, é hoje estigmatizado como blasfemo por ofender o poder do Dinheiro, deus verdadeiro do mundo contemporâneo.
Note-se que a anulação total ou parcial das dívidas, cancelando simultaneamente ativos e passivos, não afecta a riqueza existente, mas altera a sua distribuição. Porém, ao transferir recursos para aqueles que tem maior propensão a despendê-los, contribui para desbloquear a retoma.
Ainda que os obstáculos políticos a uma tal operação fossem superados, a renegociação caso a caso das dívidas à escala mundial envolveria uma tal complexidade e tomaria tanto tempo que teremos que reconhecer a sua inviabilidade. A solução prática para a desvalorização rápida, progressiva, generalizada e implacável das dívidas é conhecida desde tempos imemoriais e chama-se inflação. Isso consegue-se monetarizando as dívidas dos estados, coisa que, na actual crise, os EUA e o Reino Unido têm vindo a fazer com bons resultados.
Resta, no caso da Europa, uma pequena dificuldade: uma superstição bárbara e irracional proíbe o BCE de comprar directamente títulos da dívida pública nos mercados primários, o que o impossibilita de funcionar como emprestador de última instância – uma singularidade nada invejável do sistema monetário a que estamos amarrados.
Se no tempo de Moisés já houvesse banco central, é provável que a Bíblia lhe recomendasse que agisse como emprestador de última instância em caso de crise financeira adequada. Como os textos sagrados nada dizem a este respeito, resta-nos esperar que, antes da queda no abismo, Mario Draghi se atreva a interpretar de forma ousada o mandato que a União lhe atribuiu, enfrentando, se necessário, a ira dos Nibelungos. Hoje em dia nem é preciso pôr a máquina de fazer notas a funcionar – basta carregar num botão.»