Neda, o rosto que chama a revolta
Em farsi, o seu nome significa "voz" ou "chamamento". E as imagens da sua morte, durante os protestos do último fim-de-semana, transformaram-na no símbolo da revolta que varre as ruas de Teerão. Os amigos dizem que adorava viajar e não tolerava injustiças. O regime quer que seja esquecida
O vídeo chegou ao e-mail de Hamed, um refugiado iraniano na Holanda, na tarde de sábado. Um amigo telefonara-lhe pouco antes a contar que uma manifestante tinha sido morta ao seu lado, durante mais um protesto contra a reeleição do Presidente Mahmoud Ahmadinejad. O amigo captou o incidente no seu telemóvel e, pouco depois da conversa, as imagens chegavam ao e-mail de Hamed que, em cinco minutos, as colocou no Facebook e no YouTube. "As imagens chocaram-me muito", contou o jovem iraniano ao Guardian: "Mas senti que tinha de as divulgar porque mostram ao mundo o que se está a passar no meu país."
Há 20 anos, milhões assistiram incrédulos às imagens de um manifestante anónimo a enfrentar sozinho os tanques na Praça de Tiananmen, em Pequim. Agora, é a morte quase em directo de uma jovem nas ruas de Teerão que está a chocar o mundo, dando à revolta que há mais de dez dias varre a capital iraniana uma mártir e um símbolo da luta contra a repressão.
Sem o compreender, a poderosa hierarquia religiosa iraniana estava a sofrer, através da Internet, um dos piores reveses dos 30 anos de história do seu regime.
No espaço de horas, as redes sociais na Internet foram inundadas pelas imagens de Neda - quando ainda não se sabia se era esse o seu nome - e por alusões ao sucedido. Nesse mesmo dia, posters com o rosto ensanguentado da jovem surgiram numa manifestação contra o regime de Teerão em Los Angeles, onde reside a maior comunidade iraniana no estrangeiro. E tudo sem que os jornalistas conseguissem sair à rua para cobrir os protestos dos apoiantes de Mir-Hossein Mousavi.
As restrições à imprensa estrangeira e a censura nos jornais iranianos dificultaram a confirmação da história a circular na Internet e só aos poucos, quase sempre a medo, familiares e amigos de Neda aceitaram falar. O mito estava criado, mas a história tardava.
Neda Agha-Soltan. Era o seu nome completo. Tinha 26 anos e era a segunda de três filhos de um funcionário público e de uma dona de casa de Teerão. Uma entre milhões de jovens iranianos nascidos depois da Revolução Islâmica de 1979, criados nos subúrbios em rápido crescimento da grande metrópole do Irão.
Estudante de Filosofia Islâmica na Universidade Azad, em Teerão, Neda decidiu que o seu futuro passaria pelo turismo e inscreveu-se num curso para guias turísticos. A escolha da carreira, contam os amigos, era uma cedência à sua paixão pelas viagens, a sua curiosidade pelo mundo longe dos ditames da República Islâmica. Apesar dos modestos recursos, juntou dinheiro para visitar a Tailândia e o Dubai e, há apenas dois meses, a Turquia.
Neda - cujo nome significa "voz" ou "chamamento" em farsi - adorava também música. Era uma cantora dotada (num país onde as mulheres estão proibidas de cantar em público) e tinha aulas de piano. "Era tão cheia de alegria. Era um raio de luz", disse ao correspondente do Los Angeles Times o seu professor de Música, Hamid Panahi.
Era Panahi quem a acompanhava no sábado. É ele quem se ouve nas imagens que correram mundo: "Não tenhas medo, não tenhas medo. Querida Neda, não tenhas medo." Deitada no asfalto, de braços inertes e olhos abertos, a jovem estaria já inconsciente quando o sangue começa a sair-lhe pela boca e pelo nariz apesar dos esforços desesperados de um médico que tentou ajudá-la.
Ignorando os alertas feitos pelas autoridades, Panahi contou aos jornalistas que ficaram presos no trânsito quando se dirigiam, com outros amigos, para a concentração prevista para essa tarde. Os tumultos estavam ainda longe e os dois decidiram sair para apanhar ar e ver o que se estava a passar. Ela estaria ao telemóvel quando soou o tiro: "Sem que ela tenha atirado sequer uma pedra, eles mataram-na." Panahi diz ter ouvido apenas um tiro e recorda as últimas palavras de Neda - "Estou a arder, estou a arder" - mas confessa não saber quem disparou.
Com as imagens a correr mundo, as autoridades iranianas acusaram "terroristas armados" de terem disparado contra "vários manifestantes" e garantem que a polícia não tem ordens para abrir fogo sobre as multidões. "Eles são apenas treinados para usar o equipamento antimotim", disse o chefe da polícia de Teerão, Azizollah Rajabazadeh.
Mas a família e os líderes da oposição responsabilizam a milícia Bassiji, um grupo paramilitar dependente dos Guardas da Revolução. Num post na Internet, o médico que a assistiu afirma que o disparo terá sido feito por um sniper, refugiado num telhado próximo. Panahi diz que testemunhas viram um grupo de agentes à paisana infiltrar-se na multidão antes dos disparos.
A morte de Neda deu aos manifestantes uma heroína, uma mártir - um conceito "muito profundo" na política moderna iraniana e na tradição xiita, explicou ao P2 Sanam Vakil, professora de Estudos do Médio Oriente na John Hopkins University, em Washington. Desde o imã Hussein (o neto do profeta Maomé, morto na batalha de Kerbala contra um califa que considerava ilegítimo) que "o sacrifício pessoal em nome de uma causa" se tornou doutrina para os xiitas. E foi o culto dos mártires que morreram pela pátria que manteve o regime unido durante a guerra com o Iraque.
Mas Vakil explica que mais do que uma mártir - o que faria com que partíssemos do princípio que o seu sacrifício foi voluntário - Neda tornou-se "um símbolo importante" dos milhões que se mobilizaram com a candidatura de Mousavi e pelas suas "aspirações colectivas". "Ela era jovem, educada, aberta ao mundo e foi brutalmente assassinada", dizia ontem à tarde, por telefone, esta professora iraniana. A sua morte, acrescentou, "representa também as violações dos direitos humanos dos últimos 30 anos" cometidas no Irão.
Mashallah Shamsolvaezin, porta-voz da Sociedade para Defesa da Liberdade de Imprensa no Irão, concorda. O vídeo deu "um rosto" às vítimas e "mostrou que esta jovem era inocente e não estava a destruir coisas quando foi morta", explicou ao Financial Times.
E na Internet os bloggers fazem eco da revolta. "Eu estou viva, mas a minha irmã morreu. Ela queria apenas que o vento fizesse esvoaçar o seu cabelo; era queria ser livre", escreveu uma mulher com o nome de Hana no blogue de Mehdi Karroubi, o candidato reformista que se juntou aos protestos liderados por Mousavi. Uma conta criada no Facebook em sua memória chama-lhe Anjo da Liberdade.
Mas a família garante que Neda não era uma activista política. "O objectivo dela não era [apoiar] Mousavi ou Ahmadinejad. A sua missão era o país", disse o noivo Caspian Makan, ao serviço persa da BBC. Ao LA Times, a amiga Golshad recordou que tanto ela como os pais aconselharam Neda a não ir às manifestações de sábado. Mas ela era teimosa e, num arrepiante presságio, respondeu: "Não te preocupes. É apenas uma bala e depois acaba tudo."
O professor de Música sublinha: "Com a sua presença ela queria dizer: 'Estou aqui, também votei e o meu voto não foi contado.'" Foram as fraudes denunciadas pela oposição que a levaram a sair para a rua. "Ela não conseguia suportar a injustiça", diz Panahi.
Alarmado com a rapidez com que as imagens foram difundidas, o Governo apressou-se a minimizar os estragos. O noivo contou à BBC que o corpo de Neda "foi levado para uma morgue fora de Teerão" e só o entregaram à família sob a condição de o funeral ser rápido e discreto.
Neda foi sepultada no cemitério de Behesht Zahra, nos arredores da capital, num talhão que, garante Makan, foi reservado para os mortos dos confrontos da última semana. Segundo o LA Times não foram autorizados cânticos nem discursos.
No dia seguinte, um serviço em sua memória na mesquita do bairro onde morava foi proibido e os locais de culto da cidade receberam instruções para não aceitarem cerimónias com o seu nome. A família foi também obrigada a retirar os panos pretos que pendurara na fachada da sua casa, em sinal de luto.
Num país onde o luto tem os seus rituais definidos - é assinalado ao terceiro, sétimo e 40º dia após a morte -, as autoridades querem negar quaisquer pretextos para novas manifestações. Mas se a repressão policial pode dissuadir as pessoas de protestarem nas ruas, a juventude iraniana mantém viva a revolta na Internet e promete não esquecer Neda. Os blogues e o Twitter são as suas armas.
[Ana Fonseca Pereira, Público
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