Ainda no rescaldo do caso Martim-empreendedor-e-defensor-do-salário-mínimo vs. Raquel Varela-o-salário-mínimo-de-485euros-é-um-escândalo, eis mais algumas conclusões sobre empreendedorismo. Imagine você que tinha uma ideia de empreendedor. Por exemplo: tendo em conta a actual desconfiança nos banqueiros e no Estado, com muita gente (sobretudo depois do exemplo do Chipre) a suspeitar de que os limites para lhe irem ao bolso podem sempre ser ultrapassados, decidia criar uma empresa. Chamemos-lhe Colchão.com. O seu objectivo seria apenas garantir que os depósitos que as pessoas fizessem na sua empresa seriam integralmente devolvidos quando as pessoas quisessem. Comprometia-se a não usar o dinheiro que lhe tivesse sido confiado em nenhuma operação especulativa, a não o fazer navegar para as ilhas Caimão nem a mandá-lo por estrada para o Luxemburgo, nada! Só dinheiro na mão quando os depositantes quisessem. Escolhia um conselho de administração (podia até chamar-lhe board of directors, para o charme) de gente incorruptível e lançava-se no negócio.
Parece uma ideia simples, útil e relativamente fácil. Podíamos até considerar ter descoberto um ‘nicho de mercado’, não? Não.
Não é tudo tão simplex. Eis os gastos com que, segundo o negócios.com terá de contar se quiser iniciar uma empresa:
«Se fizermos as contas, e para manter o mínimo de actividade, gastamos pelo menos o valor a pagar a um contabilista, impostos mínimos obrigatórios, deslocações, chamadas telefónicas e impressões de documentos, ou seja, cerca de 5000€ por ano.
(…) Se é uma empresa que vende produtos, terá de facturar 33.333€ no primeiro ano apenas para equilibrar os custos mínimos de manutenção da actividade (considerou-se uma margem média de 15% para produtos). Como vê não é assim tão pouco. Necessita dessa facturação apenas para cobrir os custos mínimos, sem considerar um ordenado para si, ou mesmo um pequeno escritório.
(…) Se pretende receber um ordenado por mais pequeno que seja, como por exemplo cerca de 1100€ líquidos mês, já está a sobrecarregar a empresa em mais 23.000€ ano, ou seja que para o caso da prestação de serviços e para uma margem de 100% estaríamos a falar de 28.000€ ano de facturação. No caso dos produtos voltamos a dificultar a operação uma vez que as vendas teriam de subir de 33.333€ para 186.666€, logo no primeiro ano.»
E as reacções da concorrência (neste caso, banca estabelecida e Estado)? É mais que certo que seria denunciado pelos primeiros e punido pelo segundo se não fosse admitido no círculo restrito dos primeiros. Eis o que diz o DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro (sendo a sua mais recente actualização o DL n.º 63-A/2013, de 10/05. No artigo 8.º temos o ‘princípio de exclusividade’: «Só as instituições de crédito podem exercer a atividade de receção, do público, de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, para utilização por conta própria», reza a alínea 1. E os incumpridores levam com o art.º 200: «Aquele que exercer actividade que consista em receber do público, por conta própria ou alheia, depósitos ou outros fundos reembolsáveis, sem que para tal exista a necessária autorização, e não se verificando nenhuma das situações previstas no n.º 3 do artigo 8.º, é punido com pena de prisão até 5 anos.»
Ficou com algumas dúvidas? Pergunte ao Gaspar, que ele está lá para ajudar.
“A Cinderela do Empreendedorismo” – Ricardo A.Pereira interpela o jovem Martim N.
“Eu já obtive aquela resposta uma vez mas não foi de um miúdo, foi de um Primeiro-Ministro. Foi do Primeiro-Ministro da altura que hoje é Presidente da República. ...“ (…) É possível construir pontes [entre o Martim e a Raquel] desde que os operários que a constroem não ganhem o salário mínimo. Acho eu. Era o mínimo para construir uma ponte entre essas duas pessoas. ... Tem a verdade na boca da criança, o menino que faz ver à doutora, o bom senso prático a superiorizar-se à teoria académica e tal, tudo o que agrada ali. É uma espécie de Cinderela do empreendedorismo. ... É como dizer: ‘pá, é como comer uma carcaça de anteontem do que não comer nada’. Agora desde que no final a gente concorde que ter uma alimentação à base de carcaças de anteontem continua a ser miserável, tudo bem. (…)”
... “(…) O que está em causa, parece-me, é o seguinte. O Martim explicou o seu negócio todo, com excepção de um pequeno pormenor que eu acho fundamental. Ele disse: ‘Eu tive a ideia. Comecei a desenhar as roupas. Fui à fábrica. Convencia as miúdas mais giras da minha escola a deixarem-se fotografar com as minhas roupas e pus no facebook.’ Tudo isto está certíssimo, é uma boa ideia de negócio. Há só um pormenor que falta. No empreendedorismo é fundamental, em qualquer negócio que a gente faz, é preciso um investimento inicial. Ele disse ‘as minhas roupas hoje em dia são uma moda na linha de Cascais’.
Eu acredito que um rapaz que não more na linha de Cascais, basta um quilómetro para o lado, provavelmente não se chama Martim chama-se Zé Manel, que tem a mesma ideia para uma linha muito gira de roupa barata, vai ao banco e tem quinze anos, e diz ‘preciso só um bocadinho de dinheiro para o investimento inicial para esta minha ideia que é espectacular’. E o banco diz: ‘vai-te embora pá’. E ele chega a casa e pede aos pais, que é é o que faz um miúdo de 15 anos quando quer começar um negócio. O que é que se passa. Os pais do Fábio, ou do Zé Manel, ao contrário dos do Martim, não têm dinheiro para lhe poder emprestar para ele começar o negócio. Porquê? Porque trabalham em fábricas de roupa barata e ganham o salário mínimo, (que só dá para SUBviver, muito mal) estás a perceber? O problema é que esta conversa do empreendedorismo é uma actualização daquela conversa do ‘não têm pão comam brioches’ (...e a rainha foi guilhotinada!!), ‘não tens emprego, faz o teu emprego’. Com que dinheiro? Quando se diz, ‘empreendam porque é facílimo’, se calhar é melhor pensar que o empreendedorismo não é bem democrático. Não é acessível a toda a gente.” RAP.