Não temos funcionários públicos a mais
(-por Daniel Oliveira, Arrastão, 12/9/2013)
O trabalho dos jornalistas não é repetir como factos as opiniões da moda. É verificar nos factos - na medida em que os factos nos podem dar respostas - a veracidade de ideias feitas. E, se necessário, desmontá-las. Umas das ideias feitas mais indiscutíveis em Portugal é esta: temos funcionários públicos a mais. O peso do Estado é insuportável e é necessário reduzir o número de trabalhadores e os encargos com eles. E como se bem torturados os números confessam sempre o que deles quisermos tirar, as provas desta verdade indesmentível acabam sempre por surgir. E se eles não confessam, inventa-se. Ainda me recordo de se dizer por aí que os salários dos funcionários públicos correspondiam a 80% das despesas do Estado, de tal forma a mentira se tornou banal.
Cumprindo a sua função, a RTP fez as contas às despesas do Estado. Não precisou mais do que ir aos números oficiais. Temos cerca de 575 mil funcionários públicos. Menos do que isto, só em 1991. Chegaram, em 2005, a ser quase 750 mil. Desde então não parou de descer. Sem que, no entanto, tenha havido um despedimento coletivo. Ou seja, ao contrário do reza a lenda, Passos Coelho não chegou ao governo e encontrou um Estado que não parava de engordar. Encontrou muito menos funcionários públicos do que cinco ou seis anos antes. Encontrou um Estado que estava a emagrecer há algum tempo. Pela mão do despesista Sócrates. Que, com exceção daquele aumento em ano de eleições, não se pode dizer que tenha tratado os funcionários públicos bem.
Os funcionários públicos representavam, em 2008 (quando eram mais do que hoje), 12,1% da população ativa. A média dos 32 países da OCDE é de 15%. A Dinamarca e a Noruega aproximam-se dos 30%. Abaixo de nós está, para estragar a dimensão europeia deste mito, a Grécia.
Mesmo assim é insustentável. Porque nós não produzimos a riqueza dos dinamarqueses ou da generalidade dos europeus. Bem, o peso dos vencimentos dos funcionários públicos, em Portugal, em relação à riqueza produzida é inferior à média da UE e da zona euro. 10,5% em Portugal, 10,6% na zona euro, 10,8% na União Europeia, mais de 18% em países como a Dinamarca ou a Noruega. Repito: estamos a falar de percentagens relativas ao PIB. Ou seja, dizer que os outros têm mais capacidade para comportar esta despesa não faz qualquer sentido.
Esta é uma das coisas que mais me perturba nesta crise: a repetição ad nauseam de verdades absolutas que os números e os factos desmentem. Não, o peso do Estado português, ou pelo menos os custos com os seus funcionários, não é incomportável para a riqueza que produzimos. Haverá racionalidade a acrescentar à gestão de pessoal do Estado. Haverá desperdício. Mas nem há funcionários públicos a mais nem eles ganham acima do que a nossa produção de riqueza comporta. Os nossos problemas, no Estado, no privado e na nossa integração europeia, são outros. Os funcionários públicos são apenas o bode expiatório de políticos incapazes de enfrentar os atrasos estruturais do País. E um saco de pancada para quem aposta em virar trabalhadores do privado contra trabalhadores do público para assim não pôr em causa os verdadeiros privilégios instalados.
Publicado no Expresso Online
A insustentável imoralidade de um expediente
(-por Daniel Oliveira, 16/9/2013, Arrastão e Expresso online)
Como faz sempre que encontra um obstáculo, o governo quer contornar o veto do Tribunal Constitucional com um expediente. Aquilo a que se poderia, com toda a propriedade, chamar de legislação criativa. E a criatividade deu asneira.
O governo pretende pôr os funcionários públicos em requalificação (o que era a antecâmara do despedimento) a receber 60% do seu vencimento para, depois de um ano, passarem a receber, até se aposentarem, 40%. Podem trabalhar para o privado, sendo o seu vencimento deduzido àquilo que recebem do Estado. O que me deixou baralhado, já que, em princípio, manteriam um vinculo à função pública.
Esta solução é política e moralmente insustentável. Nenhum funcionário publico com brio viverá bem a receber uma mesada vitalícia do Estado para deixar de trabalhar. Os contribuintes só se podem sentir revoltados com esta saída. Passados uns anos quem se lembrará da origem deste "subsidio"? Não é evidente que muito rapidamente, sobretudo perante uma crise económica que promete ser longa, a contestação social a este rendimento de milhares de pessoas se tornará politicamente insuportável? E que contribuirá para descredibilizar o Estado e os seus trabalhadores?
Mesmo não concordando que haja funcionários públicos a mais, (ler aqui ), faço notar que o Tribunal Constitucional não proibiu a redução do número de trabalhadores do Estado. Apenas não permitiu que tal acontecesse da forma expedita (mais livre do que no privado) que foi proposta. Ao encontrar um expediente o governo não pensou no seu impacto político para lá do seu próprio mandato. E é esta falta de ponderação, comum em governantes que se limitam a gerir as dificuldades, ignorando o rasto de incoerências e inequidades que deixam como legado, que explica porque encontramos, no funcionamento do Estado, tantas coisas que nos parecem absurdas. Porque nasceram num determinado momento, por uma determinada razão, sem que alguém se tivesse preocupado com a sua razoabilidade e sustentabilidade política.
Um político - um verdadeiro político - não se limita a encontrar soluções técnicas para problemas políticos. Encontra soluções políticas para problemas técnicos. E esta proposta não tem, não pode ter, na sua base, qualquer preocupação política séria. A não ser, claro, que o objetivo seja encontrar uma solução de tal forma vexatória para os funcionários públicos que isso os empurre, por amor à sua própria dignidade, para a rescisão voluntária. Mas isto é o que faz um patrão sem escrúpulos. Não é o que se espera do Estado e de quem elegemos para o dirigir.
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