O marketing da receita fácil
(-por Daniel Oliveira)
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...Tendendo as escolas com melhores alunos a desistir, desde cedo, de quem tenha mais dificuldades e lhe estraga a média. Este processo que leva as escolas a selecionarem os melhores promove uma cultura de facilitismo e não o oposto: se é difícil eu resolver um problema, deixo-o para outro que, ficando com todos os problemas, não consegue resolver nenhum. Eu só quero a parte fácil para mim. No privado, faz parte do negócio. No público é inaceitável. Mas é isso mesmo que os rankings promovem. Não é a exigência na formação de quem vai sair da escola. É o egoísmo na seleção de quem lá entra.
Ou seja, os rankings conseguiram aprofundar processos de estratificação social, cultural e académica dentro do próprio sistema de ensino público. Isto, para não falar dos privados de topo, que incentivam alunos com menor rendimento escolar a mudarem de escola, num processo de darwinismo social intolerável para qualquer pedagogo decente.
É claro que aqui estou a pintar a coisa com traços grossos e toscos. A coisa é um pouco mais contraditória e difusa do que isto. Mas esta é a cultura criada pelos rankigns. Que conseguiram uma coisa ainda mais grave: contribuíram para desvirtuar a razão de ser de ensinar. Hoje, nas que são consideradas as melhores escolas do país, ensina-se para os exames. Para ser mais preciso: ensina-se para se fazerem os exames que contam para o ranking. Em vez da escola trabalhar para o aluno é o aluno que deve trabalhar para uma boa colocação da escola num ranking. Porque isso traz melhores alunos e facilita a vida dos professores e direção. O que quer dizer que a escola se concentra apenas nas competências do aluno que lhe trazem proveito a si: ter boas notas nas disciplinas avaliadas pelos rankings. A ideia dum projeto educativo equilibrado, que promova as várias capacidades do aluno e que o direcione para as suas próprias vocações, deixou de fazer sentido em muitas escolas. Uma "boa escola" tem excelentes fazedores de exames de matemática, português ou outras disciplinas que contem para ranking. No resto, da expressão artística ao desporto, da capacidade de expressão oral à criatividade, o seu ensino pode ser uma desgraça. E, em muitos casos, é mesmo. A minha pergunta é esta: mesmo partindo dum ponto de vista que recuso - que a função da escola é preparar apenas profissionais -, alguém acredita que este é o sistema de ensino que melhor serve o futuro do país?
Digo sem qualquer receio e até com alguma experiência pessoal: as escolas nos primeiros lugares dos vários rankingsestão longe de ser as escolas que melhor preparam os nossos filhos para a vida adulta, seja ela pessoal ou profissional. Algumas são próximo de medíocres no seu sistema de ensino e técnicas pedagógicas. São meras máquinas burocráticas de preparação de jovens para exames. Sem imaginação e com aversão a quem se distinga, por exemplo, pela criatividade. Nem mais um milímetro do que isto. A que acrescentam a seleção social e cultural.
Se isto pode ser preocupante no sistema privado de ensino, é gravíssimo nas escolas públicas. Não apenas pelo que faz às escolas que decidem seguir este caminho, atrasando ainda mais o nosso sistema de ensino em relação a outros, que apostam mais na polivalência de competências, na criatividade e na responsabilização dos alunos. Mas por o que faz às escolas que saem deste modelo e que vivem com a pressão da competição pela boa nota no exame, que tão pouco revela do seu trabalho. E o que faz às escolas que, em meios desfavorecidos, sempre tiveram de lidar com imensas dificuldades. A que se juntou mais uma: por mais extraordinário que sejam os seus resultados, como, fruto do meio em que trabalham, nunca conquistarão um lugar interessante no ranking, só vai para lá quem não consegue fugir. Numa espiral de degradação da qualidade do meio escolar, que aprofunda ainda mais o fosso entre os melhores e os piores.
Pela estratificação da rede escolar e pela perversão das boas práticas pedagógicos que alimentam, os rankingstransformaram-se num cancro para a nossa escola. ...
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O marketing da receita fácil
(-por Daniel Oliveira)
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Pela estratificação da rede escolar e pela perversão das boas práticas pedagógicos que alimentam, os rankings transformaram-se num cancro para a nossa escola.
Um dos piores serviços que a comunicação social prestou à comunidade.
E, porque se baseia nos resultados dos exames e em nada mais, numa poderosa arma para impor um determinado olhar sobre o que deve ser a escola.
Um ponto de vista que, através de uma avassaladora operação de marketing, exclui à partida todas as alternativas.
Por isso mesmo, a obra editada pelo Centro de Investigação das Políticas do Ensino Superior, da Fundação das Universidades Portuguesas (CIPES),
"Um olhar sobre os rankings", considera que, pelos efeitos "sociais e educativos" perversos" que teve, os rankings tornaram-se numa "calamidade pública".
Isto, deixando de fora o seu objetivo inicial destas listas:
promover os colégios privados que, quanto mais candidatos conseguirem, mais facilmente podem fazer a seleção que os valoriza. (e lhes dá mais lucro).
Mas essa parte é business as usual.
Publicado no Expresso Online e em www.Arrastão.org
A reforma do Estado, o cheque-ensino e o tráfico do costume
(-por Daniel Oliveira
Numa reportagem da semana passada, a TVI (2013/11/04 «Verdade inconveniente») voltou a mostrar-nos como funcionam as relações do Estado com os colégios privados com contratos de associação e que se batem por uma suposta "liberdade de escolha".
Desta vez não se ficou pelo grupo GPS (http://expresso.sapo.pt/colegios-privados-gps-uma-historia-exemplar=f771463 ),
que permitia que alguns dissessem que se tratava apenas de um caso de polícia. Mostrou (ver em cima ) como estamos perante um fenómeno generalizado.
O padrão é simples de resumir. Num determinado concelho há escolas públicas suficentes.
Algumas em excelentes condições, com obras muito recentes e com um óptimo quadro docente.
Outras, pelo contrário, há decadas à espera de investimento.
Escolas que chegam e, em alguns casos, até sobram para o número de alunos na região.
Mas, no mesmo raio de influência, autoriza-se a construção de escolas privadas que, à partida, sabem que contarão com apoio público - caso contrário nunca se lançariam no negócio.
Esses colégios têm direito a subsídio público para receberem alunos, ao mesmo tempo que as escolas públicas veem o número de turmas reduzido muito abaixo da sua capacidade.
Um apoio público de milhões permite que os ditos colégios ofereçam o que está interdito às escolas públicas: transporte para todos, por exemplo.
E assim se duplicam custos e se garante o subsídio público a atividades privadas que não cumprem nenhuma função que o Estado não tivesse já condições para garantir.
E se deixam as escolas do Estado a morrer por falta de alunos ou de recursos.
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É para manter esta forma de fazer negócios no país, passando para uma nova fase da RAPINA, e não para modernizar a economia e os serviços públicos, que se pede um consenso nacional em torno duma SUPOSTA REFORMA do Estado.
Na realidade, a novidade que nos oferecem é antiga de séculos:
continuar a proteger e a financiar uma das mais medíocres e protegidas elites económicas da Europa - que é constituída, há mais de cem anos, por mais ou menos as mesmas famílias («os donos de Portugal»).
A reforma que querem é apenas uma nova fase do negócio do costume.
Por isso Cavaco Silva insiste tanto no tema.
Se há quem saiba da velha arte de gerir interesses políticos e empresariais é o mais antigo político português no ativo.
Não tivesse sido a década "cavaquista" um dos pontos mais altos desta traficância e o BPN a sua caricatura mais grotesca.
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