A Assembleia aprovou recentemente uma proposta que fixa prazos na devolução do IVA às empresas, prepara-se para legislar sobre juros de mora nos pagamentos do Estado e criar regras para a definição de prazos de pagamento nos contratos públicos. São medidas que responsabilizam o Estado e criam regras no seu relacionamento com os privados. Só é pena que, em muitas áreas e sobretudo quando as empresas privadas são grandes e musculadas, o Estado seja tímido na defesa do interesse público ou simplesmente na exigência do cumprimento dos compromissos fixados.
Discutir despesa pública é discutir as regras segundo as quais se rege a relação entre o Estado e os agentes privados que executam grande parte dos projectos de investimento público. Essas regras devem partir de alguns princípios, que não têm sido cumpridos,como sejam:
1. Clareza de objectivos - Em primeiro lugar, o Estado deve definir bem o âmbito dos investimentos que tenciona promover. Na construção civil, existe o conceito do "já-agora". O "já-agora", juntamente com o "não pensámos nisto" inflaciona com enorme frequência os orçamentos, muitas vezes multiplicando-os em relação às previsões iniciais. Se há obras cuja necessidade é incerta, isso não impede que estejam especificadas e orçamentadas.
2. Monitorização - Essa clareza é fundamental para que haja uma monitorização adequada dos contratos e, em caso de incumprimento, condições para que os termos dos contratos sejam impostos, doa a quem doer. Claro que isto implica que cesse a candura com que sucessivos governos têm tratado as grandes empresas, o que contrasta, aliás, com os abusos em relação às pequenas. Um Estado responsável que exige responsabilidade, porque coloca o interesse público primeiro.
3. Transparência - A regra na celebração dos contratos tem de ser o concurso e o ajuste directo, uma rara excepção. O lançamento de concursos obriga o Estado a fixar critérios e torna as suas decisões escrutináveis. É uma regra de bom governo. A decisão do PS, no anterior mandato, de elevar desmesuradamente o montante mínimo para que os investimentos sejam sujeitos a concurso é o contrário dessa regra. O crescimento da utilização do ajuste directo é uma política incorrecta que lança ainda mais nevoeiro sobre uma área das políticas públicas em que os exemplos de promiscuidade entre interesses políticos e interesses privados se têm multiplicado.
4. Concorrência - Mas a importância dos concursos não tem só a ver com a transparência. É uma regra elementar de estímulo à concorrência. Não só obriga as empresas a disputarem esses concursos e introduz uma pressão para a baixa dos valores de adjudicação como permite criar critérios que discriminem positivamente empresas que tenham desempenhado contratos anteriores com rigor e competência.
5. Segurança Jurídica - A clareza nos objectivos e a celebração de concursos têm como objectivo assegurar a segurança jurídica do Estado e impedir que os recursos públicos sejam sequestrados por derrapagens orçamentais intermináveis. Isso significa que o Estado só renegoceia contratos em situações absolutamente excepcionais e quando estiver envolvido um alargamento objectivo e indiscutível do caderno de encargos. É insuportável que o Estado renegoceie contratos em seu prejuízo porque a parte privada invocou consequências negativas decorrentes da crise financeira mundial, como aconteceu em processos negociais recentes, denunciados pelo Tribunal de Contas.
6. Partilha de Riscos - O corolário destas ideias pode ser resumido na seguinte ideia: o paradigma que tem de nortear todos os contratos públicos é o da partilha de riscos. O Juíz Jubilado do Tribunal de Contas Carlos Moreno disse que não conhecia um único contrato em que os privados tivessem perdido dinheiro. Isso não é normal. O que é normal é que a actividade económica comporte riscos e a contratação pública não pode ter como regra que o Estado os assume a todos e os privados têm lucro garantido. Os investimentos têm de ser adjudicados pelos valores de concurso e se das circunstâncias alheias ao contratado resultarem benefícios para os privados, tanto melhor. Se resultarem prejuízos, é a vida. Isso quer dizer que as empresas se protegerão nos valores que colocam a concurso? Seja. Será certamente mais transparente e sempre melhor para o interesse público.