Quinta-feira, 10 de Setembro de 2015

      As duas abstenções    (12/8/2015, J.Vasco, Esquerda Republicana)

  Voto    Existem fundamentalmente duas formas diferentes de abstenção.     Uma é a abstenção com raiz no desleixo. Outra é a abstenção com raiz na revolta.    Naturalmente, isto é uma simplificação um pouco grosseira, mas peço ao leitor que me acompanhe.
     Embora sejam motivações completamente diferentes e opostas, é comum que ambas coexistam em maior ou menor grau em vários abstencionistas. Ou pelo menos, assim o revelam:   se o abstencionista motivado unicamente pela revolta dificilmente vai esconder a sua atitude num suposto desleixo, o contrário já se torna bastante comum - o abstencionista motivado pelo desleixo preferirá justificar a sua atitude numa suposta revolta contra os políticos "todos iguais".
     A abstenção motivada pelo desleixo é mais comum quando as coisas correm bem. A economia está a crescer, as desigualdades não são excessivas, a criminalidade está sob controlo, existem oportunidades.   Algumas pessoas sentem algum grau de aversão ao conflito natural na política, e desgostam do facto de que qualquer opinião que tenham vai sempre encontrar opositores descontentes.   Sentem desconforto em discutir assuntos, principalmente quando se sentem menos informados, e acabam por correr o risco de passar vergonhas quando eles são discutidos.    Como evitam falar sobre esses assuntos, acabam por ter menos motivação para se informarem a seu respeito, numa espécie de ciclo vicioso.     Sentem que o facto dos políticos "não se entenderem" mostra que muitos deles são desonestos, mas não se arriscam a pronunciarem-se sobre quais - preferem dizer que são todos.    Estas pessoas não estão preocupadas em mudar o sistema, e até poderiam encarar com grande desconfiança quem o quisesse fazer.    Não é tanto porque um dia na praia ou no jardim lhes seja mais apetecível que ir às urnas que não votam:   é porque preferem evitar ter de "tomar partido", e falar sobre o assunto.   Podem não o reconhecer sequer perante eles próprios (e até afirmar o contrário com indignação), mas no fundo, bem no fundo, acham que as coisas não estão muito mal, e certamente o seu esforço é melhor empregue investido na sua vida pessoal, que a zelar pelo bem comum.
       A abstenção motivada pela revolta é mais comum quando as coisas correm mal. A economia está em crise, as desigualdades são gritantes, as oportunidades são escassas, e por vezes o crime e a violência estão a aumentar.   Parece claro para algumas pessoas que a "democracia representativa" falhou, e que outro sistema diferente a deve substituir.   Assim, responsabilizam os problemas sociais naqueles que alimentam este sistema que os causa.   Pelo contrário, eles não querem alimentar este sistema que tantas injustiças e tanto mal tem causado.   Não é tanto porque um dia na praia ou no jardim lhes seja mais apetecível que não votam:   é por uma questão de princípio.   Não raras vezes, apelam a que outros lhes sigam o exemplo:   não se limitam a dizer que os políticos são todos uns bandidos, querem fazer algo a esse respeito, e esse algo começa por ser uma recusa em votar.   Embora existam excepções, é comum que estejam relativamente bem informados, e não têm medo de hostilizar outras pessoas com as suas opiniões algo radicais.   Querem mudar o status quo, querem mudar o mundo, mesmo que isso implique alguns sacrifícios.
       A abstenção motivada pelo desleixo é perniciosa?
Depende.  O desleixo, a falta de informação, a falta de reflexão, a falta de acompanhamento serão tendencialmente perniciosos - os políticos que resultam de um eleitorado desleixado são mais incompetentes e menos íntegros do que aqueles que resultam de um eleitorado informado, atento, interventivo.   Nesse sentido, quanto mais desleixo mais abstenção e pior qualidade da democracia.   Temos aqui uma retroacção negativa:  se os políticos são mais competentes a abstenção por desleixo aumenta, e a qualidade dos políticos diminui, e vice-versa.   O sistema tende para uma estabilidade relativa.
     No entanto, para um determinado nível de desleixo fixo, a abstenção é a melhor opção. Se alguém não está informado e atento, então o ideal é que se informe, que reflicta, que debata, etc.    Não o fazendo, melhor será que não vote.    Sou contra o voto obrigatório primeiramente por uma questão de princípio (acho uma tremenda violação da liberdade individual forçar alguém a votar), mas também acho que tende a piorar a qualidade da democracia, ao forçar os "desleixados" a depositar na urna um voto que não é "em consciência".
      A abstenção motivada pela revolta é perniciosa?
Depende. A abstenção motivada pela revolta é estratégia mais contra-producente que alguém pode seguir. Assim, a abstenção motivada pela revolta é benéfica para o status quo, e prejudicial para todos aqueles que o querem transformar radicalmente - em particular estes abstencionistas.
     O abstencionista motivado pela revolta acredita que ao não votar está a evitar "alimentar o sistema", mas isso só seria uma estratégia eficaz caso a esmagadora maioria (>95%?) da sociedade tivesse a mesma vontade de o alterar radicalmente.   Mas se fosse esse o caso, as eleições não corresponderiam ao desapontamento constante daqueles que desejam mudanças mais profundas.   Pelo contrário:  longe de "tirar oxigénio" ao sistema, o abstencionista motivado pela revolta está com a sua recusa em votar a aumentar o poder relativo daqueles que querem preservar o status quo face aos que querem ver mudanças mais significativas.
       Pior ainda, o abstencionista pode com a sua inacção facilitar a vida aos que querem fazer mudanças que impossibilitem que o sistema mude, mesmo quando as pessoas tiverem vontade que tal aconteça.       Exemplos concretos:       imaginemos que alguns partidos pretendiam dar mais poderes às polícias secretas, aumentar a vigilância sobre os cidadãos, limitar o direito a manifestações ou à liberdade de expressão, aumentar os poderes do aparato militar com o pretexto da luta contra o terrorismo, tornando o conceito mais abrangente ao ponto de abarcar aqueles que têm opiniões mais radicais face ao status quo.   Não é muito difícil de imaginar...    É fácil de compreender que o abstencionista motivado pela revolta não tem sobre estas questões uma opinião igual à da restante população:    tendo uma maior vontade de mudar o status quo tenderá a ver de forma mais negativa todas estas tentativas securitárias de evitar mudanças.   Ao não votar está a facilitar a vida a quem quiser implementar estas mudanças.
      Ao não votar, fortalece o status quo, o que por sua vez aumenta o seu descrédito face à ideia de que a democracia representativa possa alterá-lo.   Isso aumenta o grau de abstenção por revolta, o que por sua vez favorece ainda mais o status quo.   Temos aqui uma retroacção positiva, que nunca resulta no fim da democracia representativa - resulta antes numa democracia de má qualidade, estanque, com desigualdades, injustiças, corrupção e cinismo.    Tendencialmente uma democracia mais "musculada", à medida que os conflitos sociais se agravam.
     Faz sentido acreditar que a democracia representativa não é o sistema ideal.   Mesmo que possa ser o sistema adequado para a nossa sociedade (será?), parece-me desejável que a sociedade evolua a tal ponto que o actual sistema de organização social se torne obsoleto.
    No entanto, mesmo para quem quer desenvolver um esforço no sentido de mudar os fundamentos da nossa sociedade, e para quem acredita que o essencial da mudança futura não passa pelo actual sistema político-partidário, estou convencido que o voto é uma ferramenta à sua disposição, e não a usar um verdadeiro tiro nos pés - uma cumplicidade inadvertida para com as forças do status quo, ao colocar à margem do processo eleitoral precisamente aqueles com mais motivação para se lhe oporem. 
------
---J.Vasco:  
    A razão pela qual o voto branco não pode "sancionar" o sistema é precisamente o facto de não se saber em que sentido é que o sistema deve ser alterado.   A forma de sancionar o status quo é promover alterações, mas se ninguém procura materializar essas alterações, então ninguém cria as alternativas cuja falta lamentam - e quando alguém o faz, poucos estão atentos para dar força e apoio.
    Eu compreendo o voto em branco por parte de quem não se sente representado por nenhum partido, mas pergunto-me se essas pessoas realmente têm atenção e dão força a pequenos partidos e projectos. Eu próprio já ponderei (e não ponho de parte no futuro) o voto em branco, mas para não ser uma estratégia contraproducente, ela deve ser mesmo usada como último recurso. E não se pode dizer que partidos como o BE e PSD sejam "muito semelhantes no fundamental".
    Continua a existir muita abstenção, e até muitos apelos à abstenção. E nos últimos tempos suponho que a abstenção "desleixada" tenha diminuído, e a abstenção "revoltada" tenha aumentado (tendo em conta a evolução da situação económica e social).
---J.Santos:
...Mas se o voto em branco não permite perceber qual a natureza do protesto, permite ao menos que a classe política perceba que uma fracção dos cidadãos se dá ao trabalho de ir votar em branco (por razões que podem ser díspares, claro). Como diz, a abstenção nem sequer permite tal coisa, ela pode até indicar que se está satisfeito com o actual estado de coisas.
P.S. Tem razão o M.M., a Lei Eleitoral de Eleição do PR diz o seguinte (nesta era do Google só mete o pé na boca quem é muito preguiçoso):    Artigo 10º - Critério da eleição
1 — Será eleito o candidato que obtiver mais de metade dos votos validamente expressos, não se considerando como tal os votos em branco.
    O menos mau   (LNT)
 Voto...esta gente que, em nosso nome, decide o mal que nos há-de fazer.  ...  teremos a oportunidade de, em vez de nos lamuriarmos com o destino que Deus nos deu, escolhermos o melhor para Portugal e, mesmo que esse melhor não seja o “MELHOR” que Portugal possa ter, que seja pelo menos melhor do que aquilo que temos agora. (ou  'menos mau') ...


Publicado por Xa2 às 07:37 | link do post | comentar

3 comentários:
De Não à PàF do PSD/CDS !! a 17 de Setembro de 2015 às 18:10
BRINCAR COM O FOGO

Horroriza-me que tanta gente, e não estou a falar de guardadores de rebanhos, olhe para as eleições do próximo 4 de Outubro como quem discute as razões de preferir Cacela à Quinta do Lago.

No momento em que um vórtice de akrasia engole a Europa
(meio milhão de desempregados,
a deriva dos refugiados,
as fronteiras blindadas,
a provável vitória da Direita na Grécia,
o imbróglio da Catalunha,
o envolvimento do Reino Unido e da França na Síria,
para só citar os casos mais gritantes),

um terço dos portugueses prepara-se para não ir votar e outro terço acredita no milagre de Fátima.

Porém, nunca tanto esteve em jogo como nas eleições de 4 de Outubro.
Depois não se queixem.

( por Eduardo Pitta, 15/9/2015, da Literatura)

----
DISCURSO DIRECTO, 15

D. Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas e Segurança, no jornal i. Excerto:

«Quem trate de ouvir o discurso de Passos e Portas acha que entrou no eldorado.
O que me escandaliza é que toda esta governação viva à nossa custa.
Estaríamos perdidos se a coligação continuasse à frente do país.
Claro que vou votar em António Costa.»

(eu diria: Claro que vou votar, mas NÃO na PàF do PSD/CDS !!)


De Voto Consciente, melhor q. "útil". a 17 de Setembro de 2015 às 18:22
A verdade tem de ser dita

Uma mistificação de todo o tamanho

Desde 1975 que não deve ter havido uma eleição legislativa em que, ainda que com variantes conjunturais, o PS não tenha dito isto, que é política e aritmeticamente falso.

De facto, como devia ser óbvio mas não o é ainda,
não é o quem fica à frente (sem maioria absoluta) que determina a derrota ou a vitória da direita coligada.
O que determinará a sua derrota não é o PS ficar-lhe à frente
mas o facto de PSD e CDS ficarem em minoria na AR
com os partidos da oposição a deterem numericamente a maioria absoluta dos deputados.

E os votos na CDU, como não são votos na direita coligada, contribuem sempre para a sua derrota (como Jerónimo de Sousa tem salientando em tantos discursos).

Além do mais, importa chamar a atenção para que esta falsidade do PS pode incorporar atrás do reposteiro um ideia muito perigosa e inadmissível:
a de que, se a coligação PSD-CDS fosse a mais votada (mas sem maioria absoluta),
o PS fecharia os olhos à formação de um novo governo da direita.

(por vítor dias, O tempo das cerejas, 17/9/2015)


De Voto "ÚTIL" é à esquerda do PS. a 22 de Setembro de 2015 às 17:20

O VOTO ÚTIL DA ESQUERDA, É
NOS PARTIDOS À ESQUERDA DO PS


As sondagens são o que são
[* PS 35,5%, PSD/CDS 34%, CDU 10,3%, BE 5,2%, Livre, 1,8&, PDR 2,2%, ...],
mas todas as indicações de que dispomos duas semanas antes das eleições, permitem concluir que:

1. A 4 de Outubro nem o PS nem a coligação PSD/CDS vão ter uma maioria absoluta que lhes permita formar governo sozinhos.

2. Mesmo que a coligação PSD/CDS tenha mais votos e deputados que o PS, a coligação PSD e CDS não vai conseguir formar governo, a não ser com o PS.

3. Fique o PS atrás ou à frente do PSD/CDS, é o PS que vai decidir com quem quer governar, se com o PSD e/ou o CDS, ou se com os partidos à sua esquerda.

4. O voto útil da esquerda a 4 de Outubro é portanto nos partidos à esquerda do PS, quanto maior a sua votação mais hipótese haverá de o PS rejeitar coligar-se com o PSD e/ou o CDS, e pela primeira vez na sua história entender-se com os partidos à sua esquerda.

5. Ou no caso mais provável de o PS optar por se aliar outra vez à direita, também importante é ter uma boa representação de deputados dos partidos à esquerda do PS na Assembleia da República.


(*Os valores no quadro são os da sondagem de 18/09, no Expresso)


(-por J Eduardo Brissos, 19/9/2015, http://aessenciadapolvora.blogspot.pt/


Comentar post

MARCADORES

administração pública

alternativas

ambiente

análise

austeridade

autarquias

banca

bancocracia

bancos

bangsters

capitalismo

cavaco silva

cidadania

classe média

comunicação social

corrupção

crime

crise

crise?

cultura

democracia

desemprego

desgoverno

desigualdade

direita

direitos

direitos humanos

ditadura

dívida

economia

educação

eleições

empresas

esquerda

estado

estado social

estado-capturado

euro

europa

exploração

fascismo

finança

fisco

globalização

governo

grécia

humor

impostos

interesses obscuros

internacional

jornalismo

justiça

legislação

legislativas

liberdade

lisboa

lobbies

manifestação

manipulação

medo

mercados

mfl

mídia

multinacionais

neoliberal

offshores

oligarquia

orçamento

parlamento

partido socialista

partidos

pobreza

poder

política

politica

políticos

portugal

precariedade

presidente da república

privados

privatização

privatizações

propaganda

ps

psd

público

saúde

segurança

sindicalismo

soberania

sociedade

sócrates

solidariedade

trabalhadores

trabalho

transnacionais

transparência

troika

união europeia

valores

todas as tags

ARQUIVO

Janeiro 2022

Novembro 2019

Junho 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

RSS