Amadeu, que aprendeu o mundo no campo e tinha o coração na ponta dos dedos
Em Portugal, a dedicação à língua mirandesa tem nome próprio: Amadeu Ferreira, o jurista da CMVM que - quando todos diziam que "era uma loucura impossível" - arranjou tempo para traduzir "Os Lusíadas", a "Mensagem", os quatro Evangelhos da Bíblia e ainda duas aventuras do Asterix para uma língua que pertence a um cantinho do nordeste português e é falada por menos de 15 mil pessoas. O Mirandês é a 2ª língua oficial da República Portuguesa (a 3ª é a L. Gestual P.) No final de 2014 deu ao Expresso aquela que viria a ser a sua última entrevista. Morreu em 1/3/2015 e esta quinta-feira é lançada a sua biografia, "O fio das lembranças", com quase 800 páginas.
É da natureza das cidades não permitir horizontes largos e profundos. Toda a gente sabe que entre prédios e carros só se vê o prédio mais próximo, o semáforo, o passeio do outro lado da estrada. Talvez por isso seja impossível estar em Lisboa e ver o alto das arribas do Douro. Mesmo em bicos de pé, do alto de qualquer colina da cidade, não dá. Ninguém as vê, a não ser Amadeu Ferreira.
Dezembro de 2014, Saldanha, centro de Lisboa, Hora de ponta
Chego a casa dele ao fim da tarde. Já lá está o fotógrafo a arranjar a melhor luz para fotografá-lo. Amadeu Ferreira tem 64 anos e um tumor no cérebro. Estamos no Inverno e sabíamos de antemão que a entrevista só poderia acontecer num ambiente protegido. A sala está quente e os dois filhos de Amadeu estão por casa para ajudar o pai e os jornalistas no que for preciso. Parar não é um verbo que encaixe na vida deste homem. Apesar de muito doente e quase cego, Amadeu acaba de lançar um livro de provérbios mirandeses, "Ditos dezideiros", e um outro de poemas que acompanham fotografias de Luís Borges da região transmontana, o "Norteando". Anda agora a trabalhar um livro "entre o poético e o filosófico", sobre a velhice. Sabe que já não tem muito tempo de vida, por isso aceita tirar parte da tarde para falar com o Expresso sobre o que mais ama: a língua mirandesa. E do que falta fazer pela vida dela - a este tema o Expresso voltará, de forma mais detalhada, numa das edições de março da revista E.
"No passado, há muitos anos, obrigaram-nos a falar português. Disseram-nos que o mirandês não era uma língua de gente ou, então, era uma língua de gente estúpida, atrasada. (...) Envergonhada, foi-se escondendo de quem vinha de fora, foi encolhendo até ficar presa numa pontinha de Portugal. (...) Em cada aldeia, a língua cresceu com as suas diferenças, a sua maneira de ser, embora sem deixar de ser quem era. Apagar essas diferenças ou fazer de conta que não existem seria ficar mais pobre e, quem sabe, morrer de vez. Pertencer ao mirandês, como uma língua única, é algo de que nos devemos orgulhar."
Orgulho é uma palavra que encaixa bem em Amadeu Ferreira. Vice-presidente da Comissão de Mercados de Valores Mobiliários (CMVM) e professor de Direito na Universidade Nova de Lisboa, Amadeu foi também o escritor, poeta, tradutor, cronista e o investigador que mais tempo e trabalho dedicou à promoção da língua que o "amamentou". Nascido em 1950 em Sendim (Miranda do Douro), fez parte da geração que abandonou a terra e a língua. Onde muitos tinham vergonha da sua origem, aquele jovem sendines tinha um orgulho desmedido pelas palavras e expressões que ouvia os pais e os vizinhos usarem no dia-a-dia. "A vida no campo, nos anos 50, no interior do país, era uma vida difícil. Sendo filho de uma família muito pobre tive a sorte de poder estudar, mas sempre, desde novo, trabalhei no campo. O mundo que aprendi foi o mundo do campo. E aprendi-o em mirandês."
Muitos anos depois de ter nascido e a muitos quilómetros de distância de Miranda, numa "longa noite de setembro de 1999", Amadeu Ferreira sentou-se à secretária e, num rasgo de insónia e de inquietação, escreveu um manifesto pela língua mirandesa. Da ponta dos dedos saíram-lhe oito páginas que eram ao mesmo tempo um resumo de história, um pedido de socorro e uma carta de amor.
"Que destino queremos para o mirandês? É muito difícil responder: a língua está tão doente que ainda não descobriu remédio que a salve. Primeiro, fez uma fronteira com o português e manteve-se apenas numa parte da Terra de Miranda; depois, tornou-se amiga do português e foi-lhe pedindo palavras emprestadas como se fossem suas. Quando, entretanto, a expulsaram da Igreja, foi como receber uma facada que nunca deixou de sangrar e, com o tempo, evoluiu para cancro. Quem conhece a cura para o cancro? Apesar disso, não há que desistir nunca ou dar-se por vencido. O pior é que os mirandeses nem se aperceberam. Está doente, velha e cansada, com poucas forças para resistir. E apenas existe uma maneira de os velhos viverem: através dos filhos. O mirandês deve deixar filhos que tenham orgulho na sua língua e não reneguem os pais."
... "Diria à minha neta: sê tu mesma dentro deste caminho, livre com intervenção de cidadã, com intervenção positiva, no sentido de que o mundo é transformável. O mundo onde nasceste não está totalmente feito, sobrou um bocadinho para tu fazeres."
... Desde o início dos anos 90, Amadeu Ferreira dedicou grande parte do seu tempo a promover a língua mirandesa. Escreveu dezenas de livros, traduziu centenas de páginas, publicou ensaios, deu aulas de língua mirandesa ao vivo e online, alimentou blogues e tertúlias à volta da língua materna, teve uma crónica no jornal "Público" escrita integralmente em mirandês. Criou ainda a Associação de Língua e Cultura Mirandesa, com uma sede chamada "Casa de la Lhéngua", em Miranda do Douro. ...
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