A este propósito, republico um texto do João Mesquita (já falecido).
A um mês da queda da ditadura, os expoentes máximos do «canto de intervenção» actuaram no Coliseu de Lisboa, perante milhares de pessoas. Ninguém adivinhava o que aí vinha. Mas, quem lá esteve, sentiu que a liberdade estava a passar por ali.
«Grândola, vila morena/ Terra da fraternidade/ O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti ò cidade.» Quando cinco mil pessoas, de pé, de braço dado e inclinando-se compassadamente, ora para a esquerda, ora para a direita, começaram a entoar a mítica canção de José Afonso, o soalho de madeira do velho Coliseu dos Recreios transmitiu a sensação de poder ruir em qualquer altura. Mas não foi isso que fez que um arrepio fosse subindo pela espinha da multidão. No palco, exactamente do mesmo modo, alguns dos nomes mais importantes da chamada música popular portuguesa cantavam igual melodia. Só isso era absolutamente inédito no Portugal de então. No seu conjunto, o ambiente dava a sensação de que, mais do que um grande espectáculo ou uma grande festa, era algo de histórico que estava a acontecer.
As cinco mil almas que, naquela noite de 29 de Março de 1974, se deslocaram ao lisboeta Coliseu dos Recreios – pagando por um bilhete, desde que não comprado na «candonga», 50 escudos –, estavam longe de imaginar que, menos de um mês depois, o regime que tanto detestavam estava derrubado. Muito mais: que a «Grândola, Vila Morena», por elas entoada em coro (haviam começado a fazê-lo em pequenos grupos, aliás, ainda antes de o espectáculo se iniciar), seria o sinal para o arranque das operações militares que levariam à queda de Marcelo Caetano. Mas quando o I Encontro da Canção Portuguesa – assim se chamou a iniciativa, organizada pela Casa da Imprensa – terminou, era uma e um quarto da madrugada, todos quantos nele participaram tinham a sensação de terem dado um empurrãozinho para que nada, no País, fosse como até aí.
O quarteto de Marcos Resende abriu o programa, que desinteligências de última hora com a organização impediram que fosse apresentado pelo radialista José Nuno Martins. «Até é capaz de ser (um grupo) razoável, só que não se chegou a ouvir, dada a maior força dos assobios», escrevia-se no Diário de Notícias do dia seguinte. Sucedeu-lhe o duo Carlos Alberto Moniz-Maria do Amparo. «Tenho notado a sua presença em locais e encontros completamente opostos. Só se se perderam», anotava Alexandre Pais no República, dando corpo à pouca disponibilidade para concessões então dominante em certos círculos oposicionistas. Veio depois um (quase) ilustre desconhecido. «O meu nome é Manuel José Soares. Peço desculpa de não o ter dito (no início da actuação)», apresentou-se o próprio, que tal como todos os outros, actuou gratuitamente.
A primeira grande ovação da noite foi para Carlos Paredes e Fernando Alvim. «(Com eles), o público percebeu que uma guitarra não é sinónimo de fado. E que este, gasto em realizações anteriores da Casa da Imprensa, em boa hora não tinha sido para ali chamado», sustentava Regina Louro, também no República. Estava criado o ambiente para a atribuição dos prémios da associação mutualista dos jornalistas, anunciados por Joaquim Furtado e atribuídos por um júri que integrava os críticos José Duarte e Tito Lívio e os radialistas João Paulo Guerra e José Manuel Nunes. A maioria deles não provocou estrondo – Carlos Trincheiras, no bailado; António Victorino de Almeida, na TV; Jorge Peixinho, na música erudita; António Ramos Rosa, na literatura; Vasco Barbosa, como instrumentalista; Nela Maysa, como pianista; Elsa Saque, como cantora lírica. Mas os restantes dois deram brado. Um foi para o programa radiofónico Página Um, da Rádio Renascença, e entre os que o receberam encontrava-se Adelino Gomes, então já afastado da rádio e a trabalhar na revista Seara Nova. O Diário de Notícias chegava a garantir que o prémio não fora atribuído e O Século ocultava o nome de Adelino. O outro foi para Sérgio Godinho e José Mário Branco, pelos seus álbuns de estreia – Os Sobreviventes e Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, respectivamente. Os dois cantores encontravam-se exilados em França e, portanto, «não puderam comparecer», como dizia O Século. Mas pouca gente recebeu tantos aplausos como eles. Afinal, canções como «Romance de um dia na estrada», de Sérgio, ou «Queixa das almas jovens censuradas», de Zé Mário (com letra de Natália Correia), corriam já de boca em boca.
Após o intervalo, a primeira actuação foi dos espanhóis Viño Tinto. Também estes, ainda que por razões bem diferentes, estiveram para «não comparecer». É que a gerência do hotel lisboeta onde se hospedaram reteve-os por uns tempos, quando se apercebeu de que se preparavam para sair sem que a respectiva conta estivesse liquidada. A direcção da Casa da Imprensa lá resolveu o problema. José Carlos Ary dos Santos, que surgiu a seguir no palco, é que teve de resolver o seu sozinho. Parte da assistência não lhe perdoou, entre outras coisas, o envolvimento nos Festivais RTP da Canção. E desatou a assobiá-lo. Como de costume, Ary não se ficou: «Eu venho para dizer poesia. Se não gostam, manifestem-se no fim.» Abandonou o palco sob aplausos, depois de ter declamado «SARL».
A Ary sucederam-se – não necessariamente por esta ordem – José Barata Moura, o grupo Intróito, Manuel Freire, Fernando Tordo (a sua, e de Ary dos Santos, «Tourada», também foi mal recebida, ou não tivesse sido concorrente aos contestadíssimos festivais televisivos da época), Fausto, Vitorino, José Jorge Letria e, finalmente, Adriano Correia de Oliveira e José Afonso. Zeca «atacou» logo com «Grândola». Depois, cantou «Milho Verde», a outra canção sua cuja interpretação foi autorizada pela Censura. A seguir, chamou todos os restantes cantores ao palco, estes deram os braços, começaram a bater, ritmadamente, com os pés no chão, as luzes apagaram-se na sala. «Grândola, vila morena…», ouviu-se novamente, desta vez em coro. Cinco mil pessoas levantaram-se, como se uma mola as tivesse impulsionado. Deram igualmente os braços. E cantaram, também elas: «… terra da fraternidade…».
No fim, houve quem tivesse entoado o hino nacional. Mas deu a ideia de que mesmo esses, se pudessem, cantariam antes «A Internacional». Só que ainda faltava um mês para o derrube de Marcelo, a polícia de choque estava estacionada nas proximidades, a sala tinha pides espalhados por todos os cantos, a liberdade de expressão não era especialmente apreciada pela ditadura. Que o digam os artistas que, no fim do espectáculo, foram interpelados pela então denominada Direcção-Geral de Segurança. Ou os que, para evitarem tão desconfortáveis encontros, saíram pela porta dos fundos… - in António Simões do Paço (coord.), Os Anos de Salazar, vol. 30, O Povo é Quem Mais Ordena, Planeta DeAgostini, 2008, pp. 154-157.