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10/10/2014, LeMondeDiplomatique PtAntes fosse só incompetência, mas não é. (existe intencionalidade). A incompetência resolve-se substituindo pessoas impreparadas por pessoas capazes de fazer um trabalho bem feito. Não seria um grande drama: mesmo com a emigração, o país ainda está cheio de pessoas competentes. Mas o que está a acontecer ultrapassa em muito a incompetência. O actual disfuncionamento da sociedade é uma consequência previsível, saudada por uns e criticada por outros, da transformação estrutural imposta pela austeridade, pela dívida, pela arquitectura europeia e monetária. E avariar o Estado é um elemento central deste empreendimento.
O Estado deixa de funcionar através dos cortes de financiamento e das transferências de recursos, isto é, com políticas de desinvestimento público, degradação do Estado social (sistemas de educação, saúde e segurança social), ataque ao mundo do trabalho (salários, contratação, despedimentos) e canalização dos recursos aí gerados para o sistema financeiro. Chamam-lhe «disfuncionamento» os que discordam do tipo de sociedade que ela engendra; para os outros, os adeptos do neoliberalismo, tudo corre como projectado. Por vezes as trapalhadas são demasiado notórias, obrigando até a pedir desculpas, mas isso só significa que vão procurar uma forma mais eficaz de nos fazer engolir o seu modelo de sociedade, e nunca que desistiram dele. As desigualdades e as injustiças continuam a funcionar.
Na justiça, mergulhada há muito numa crise profunda, parecia não ser fácil piorar a situação. Mas o governo conseguiu fazê-lo. A reforma judiciária fechou tribunais funcionais para abrir outros sem as mínimas condições. Obriga funcionários a grandes deslocações (várias horas por dia e de táxi) e processos a serem transportados sem garantias da sua integridade física (em camiões de caixa aberta) e pelo exército. Ao mesmo tempo, o programa informático CITIUS entrou em colapso total, deixando o sistema parado há mais de um mês, com todos os prejuízos que daí advêm para os trabalhadores judiciais e para os cidadãos que recorrem à justiça. Esta já tinha problemas de ineficiência e inigualitarismo, agora a sua paralisação potencia o regresso de todas as aberrações justicialistas (a que não faltará quem chame «justiça popular» ou «populismo», certamente de geração espontânea).
É difícil imaginar que esteja a preparar-se uma privatização em grande escala do sistema judiciário em Portugal (depois pensa-se nas primeiras privatizações das prisões nos Estados Unidos…, nos "tribunais arbitrais" privados e manipulados, nas multinacionais sociedades de advogados e suas filiais locais, ...). Mas a flexibilidade (e globalização) do projecto neoliberal não admite apenas privatizações, sendo exímio em concessões, parcerias público-privadas (PPP rentistas sugadoras do Estado), etc. Antes destas engenharias tende a disseminar-se um mito, o de que os privados seriam melhores gestores do que o público, e uma experiência marcante, a do mau funcionamento dos serviços públicos, ou até a de «ser bem tratado no privado». O caos na justiça cria o terreno para esta construção.
Na educação reina um outro caos. O início do ano lectivo arrancou sem professores e sem aulas em muitas escolas, com muitas carências ao nível do pessoal auxiliar, com erros inadmissíveis, e repetidos, nos concursos de colocação de professores, cujas consequências são prejuízos materiais e morais para muitas famílias de norte a sul do país. Poderia até ser uma boa piada a sugestão feita aos professores prejudicados de que recorressem aos tribunais, quando a justiça se encontra paralisada. Mas o problema é que isso foi dito, sem graça, pelo Ministério da Educação e, ainda por cima, com o ar de quem não tenciona gastar um cêntimo com pessoas que, pasme-se, insistem em ser mais do que só números.
O problema tem efeitos desiguais: há escolas onde existe mais instabilidade, há regiões onde o caos tem mais condições de beneficiar o ensino privado, há professores mais precarizados, há famílias como mais possibilidades de encontrar ajudas educativas e de guarda para os filhos. Avariar as escolas faz-se com subfinanciamento; com a canalização de recursos para fora do público; com a colocação de pais, professores e estudantes em situações tão degradadas no público que os põe a pensar em alternativas. As trapalhadas e as incompetências criam, também aqui, má experiência dos sistemas públicos. O resto – a escola democrática, igualitária, base da igualdade de oportunidades –, são danos colaterais aceitáveis para os neoliberais.
No campo do trabalho, o mais recente escândalo decorre dos contornos da revisão do salário mínimo nacional (ver, nesta edição, o artigo de Fernando Marques). É evidente que qualquer aumento, mesmo que seja pouco superior a 15 euros por mês, conta muito em orçamentos de miséria – falamos de quase 500 mil trabalhadores. Mas não pode deixar de chocar que um aumento que estava congelado, mas acordado, tenha implicado novas cedências no montante e que a revisão seja feita à custa da segurança social (cuja falta de sustentabilidade o governo a seguir apregoará). Escandaloso é também que as instâncias europeias se tenham apressado a avisar que o aumento é provisório e exagerado (se calhar 500 euros passou a limiar de riqueza…).
O que tudo isto significa é que prossegue a desvalorização interna, a aposta num país com salários tão baixos que possa competir com todas as indignidades laborais que outros consigam impor aos seus trabalhadores. Prossegue a preparação do caos que, nas suas mentes, há-de levar ao fim do modelo actual de segurança social e ao alargamento do mercado dos seguros privados. Também no sector do trabalho se verifica que os neoliberais cuidam muito do Estado, mas apenas para que ele seja o instrumento da corrosão do público, da destruição do sentido de comunidade e do benefício de/para interesses e sectores privados.
O que tem acontecido na área da saúde, onde alguns dizem nada estar a acontecer e que os piores cortes já teriam surtido efeito, é a este título bem ilustrativo. As mais eficazes avarias do Estado, ou os melhores arranjos pessoais e negócios privados, fazem-se discretamente. De alguns temos notícia passados anos, como acontece com o que se vem sabendo do chamado «caso Tecnoforma» e da actuação de Pedro Passos Coelho; de outros, enquanto decorrem. No meio das notícias das perdas e falências do «caso BES», o mercado financeiro anima-se, arreganha os dentes. As peripécias em torno da valorização da Espírito Santo Saúde, cuja venda promete ser lucrativa, coincidiram com as greves de médicos e enfermeiros. Nos comentários do Ministério da Saúde repetiu-se o refrão: «o pior é que quem fica prejudicado com estas greves são os utentes do serviço público que não podem recorrer a outra alternativa». Fez lembrar aqueles cartazes do tempo das obras, mas desta vez para dizer: «desculpem o incómodo, mas estamos a trabalhar para que tenha acesso a serviços de saúde privados e concessionados».
Avariar o funcionamento de um Estado é fácil: corta-se, transfere-se, destrói-se e desrespeita-se a vida da maioria dos cidadãos. Pô-lo novamente a funcionar é que é um duro combate. Não exige só competência; exige sentido de serviço público, convicção das vantagens de uma sociedade igualitária, e coragem para assumir os confrontos, com escala europeia, de que dependerá ter meios materiais para solucionar a avaria.
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Acabar com o SNS, esse desígnio da direita (-J.Mendes, 3/11/2015, Aventar)
Se em 1979 o PSD social-democrata votou contra a criação do SNS, não há-de ser o PSD (neo)liberal, movido por uma agenda ideológica de obliteração do Estado Social e obcecado por privatizar tudo a qualquer preço, que pensará de forma muito diferente: o SNS (tal como este governo) é para suprimir o mais rapidamente possível. Mas anunciar a sua privatização seria gerador de forte contestação por parte da sociedade civil pelo que o esquema deve ser cuidadoso e gradual: primeiro o desinvestimento, com cortes em sucessivos Orçamentos de Estado que explicam em parte o caos, por vezes fatal, que se instalou nas urgências no Inverno passado. Faltam médicos, faltam enfermeiros, entretanto emigrados para o Reino Unido, e falta equipamento (e medicamentos).
Paralelamente, emerge o sector privado de saúde, que acumula lucros fabulosos com a mesma velocidade a que o SNS se vai desintegrando, com a benção de um governo que até conta com um Secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social que foi em tempos lobista ao serviço de um grupo privado de saúde. Por fim, cereja em cima do bolo, nomeia-se um ministro da Saúde com a sensibilidade de um tijolo que, confrontado com a fragilidade de um SNS que vê pessoas morrerem após longas esperas em corredores hospitalares com condições terceiro-mundistas, afirma convictamente que os serviços de urgências funcionam muito bem e que quem diz o contrário são comunistas com agendas obscuras. É uma questão de tempo. Acabar com o SNS é um desígnio desta direita “teapartizada” (facção de extrema direita do partido republicano/ conservador dos EUA).
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