Terça-feira, 3 de Novembro de 2015

Avariar  o  Estado

por Sandra Monteiro , 10/10/2014, LeMondeDiplomatique Pt

     Antes fosse só incompetência, mas não é. (existe intencionalidade). A incompetência resolve-se substituindo pessoas impreparadas por pessoas capazes de fazer um trabalho bem feito. Não seria um grande drama: mesmo com a emigração, o país ainda está cheio de pessoas competentes. Mas o que está a acontecer ultrapassa em muito a incompetência.    O actual disfuncionamento da sociedade é uma consequência previsível, saudada por uns e criticada por outros, da transformação estrutural imposta pela austeridade, pela dívida, pela arquitectura europeia e monetária. E avariar o Estado é um elemento central deste empreendimento.

    O Estado deixa de funcionar através dos cortes de financiamento e das transferências de recursos, isto é, com políticas de desinvestimento público, degradação do Estado social (sistemas de educação, saúde e segurança social), ataque ao mundo do trabalho (salários, contratação, despedimentos) e canalização dos recursos aí gerados para o sistema financeiro.    Chamam-lhe «disfuncionamento» os que discordam do tipo de sociedade que ela engendra;  para os outros, os adeptos do neoliberalismo, tudo corre como projectado. Por vezes as trapalhadas são demasiado notórias, obrigando até a pedir desculpas, mas isso só significa que vão procurar uma forma mais eficaz de nos fazer engolir o seu modelo de sociedade, e nunca que desistiram dele. As desigualdades e as injustiças continuam a funcionar.

      Na justiça, mergulhada há muito numa crise profunda, parecia não ser fácil piorar a situação. Mas o governo conseguiu fazê-lo. A reforma judiciária fechou tribunais funcionais para abrir outros sem as mínimas condições. Obriga funcionários a grandes deslocações (várias horas por dia e de táxi) e processos a serem transportados sem garantias da sua integridade física (em camiões de caixa aberta) e pelo exército. Ao mesmo tempo, o programa informático CITIUS entrou em colapso total, deixando o sistema parado há mais de um mês, com todos os prejuízos que daí advêm para os trabalhadores judiciais e para os cidadãos que recorrem à justiça. Esta já tinha problemas de ineficiência e inigualitarismo, agora a sua paralisação potencia o regresso de todas as aberrações justicialistas (a que não faltará quem chame «justiça popular» ou «populismo», certamente de geração espontânea).

    É difícil imaginar que esteja a preparar-se uma privatização em grande escala do sistema judiciário em Portugal (depois pensa-se nas primeiras privatizações das prisões nos Estados Unidos…, nos "tribunais arbitrais" privados e manipulados, nas multinacionais sociedades de advogados e suas filiais locais, ...). Mas a flexibilidade (e globalização) do projecto neoliberal não admite apenas privatizações, sendo exímio em concessões, parcerias público-privadas (PPP rentistas sugadoras do Estado), etc. Antes destas engenharias tende a disseminar-se um mito, o de que os privados seriam melhores gestores do que o público, e uma experiência marcante, a do mau funcionamento dos serviços públicos, ou até a de «ser bem tratado no privado». O caos na justiça cria o terreno para esta construção.

Na educação reina um outro caos. O início do ano lectivo arrancou sem professores e sem aulas em muitas escolas, com muitas carências ao nível do pessoal auxiliar, com erros inadmissíveis, e repetidos, nos concursos de colocação de professores, cujas consequências são prejuízos materiais e morais para muitas famílias de norte a sul do país. Poderia até ser uma boa piada a sugestão feita aos professores prejudicados de que recorressem aos tribunais, quando a justiça se encontra paralisada. Mas o problema é que isso foi dito, sem graça, pelo Ministério da Educação e, ainda por cima, com o ar de quem não tenciona gastar um cêntimo com pessoas que, pasme-se, insistem em ser mais do que só números.

    O problema tem efeitos desiguais:  há escolas onde existe mais instabilidade, há regiões onde o caos tem mais condições de beneficiar o ensino privado, há professores mais precarizados, há famílias como mais possibilidades de encontrar ajudas educativas e de guarda para os filhos.  Avariar as escolas faz-se com subfinanciamento; com a canalização de recursos para fora do público; com a colocação de pais, professores e estudantes em situações tão degradadas no público que os põe a pensar em alternativas. As trapalhadas e as incompetências criam, também aqui, má experiência dos sistemas públicos. O resto – a escola democrática, igualitária, base da igualdade de oportunidades –, são danos colaterais aceitáveis para os neoliberais.

No campo do trabalho, o mais recente escândalo decorre dos contornos da revisão do salário mínimo nacional (ver, nesta edição, o artigo de Fernando Marques). É evidente que qualquer aumento, mesmo que seja pouco superior a 15 euros por mês, conta muito em orçamentos de miséria – falamos de quase 500 mil trabalhadores. Mas não pode deixar de chocar que um aumento que estava congelado, mas acordado, tenha implicado novas cedências no montante e que a revisão seja feita à custa da segurança social (cuja falta de sustentabilidade o governo a seguir apregoará). Escandaloso é também que as instâncias europeias se tenham apressado a avisar que o aumento é provisório e exagerado (se calhar 500 euros passou a limiar de riqueza…).

    O que tudo isto significa é que prossegue a desvalorização interna, a aposta num país com salários tão baixos que possa competir com todas as indignidades laborais que outros consigam impor aos seus trabalhadores. Prossegue a preparação do caos que, nas suas mentes, há-de levar ao fim do modelo actual de segurança social e ao alargamento do mercado dos seguros privados. Também no sector do trabalho se verifica que os neoliberais cuidam muito do Estado, mas apenas para que ele seja o instrumento da corrosão do público, da destruição do sentido de comunidade e do benefício de/para interesses e sectores privados.

    O que tem acontecido na área da saúde, onde alguns dizem nada estar a acontecer e que os piores cortes já teriam surtido efeito, é a este título bem ilustrativo. As mais eficazes avarias do Estado, ou os melhores arranjos pessoais e negócios privados, fazem-se discretamente. De alguns temos notícia passados anos, como acontece com o que se vem sabendo do chamado «caso Tecnoforma» e da actuação de Pedro Passos Coelho; de outros, enquanto decorrem. No meio das notícias das perdas e falências do «caso BES», o mercado financeiro anima-se, arreganha os dentes. As peripécias em torno da valorização da Espírito Santo Saúde, cuja venda promete ser lucrativa, coincidiram com as greves de médicos e enfermeiros. Nos comentários do Ministério da Saúde repetiu-se o refrão: «o pior é que quem fica prejudicado com estas greves são os utentes do serviço público que não podem recorrer a outra alternativa». Fez lembrar aqueles cartazes do tempo das obras, mas desta vez para dizer: «desculpem o incómodo, mas estamos a trabalhar para que tenha acesso a serviços de saúde privados e concessionados».

     Avariar o funcionamento de um Estado é fácil: corta-se, transfere-se, destrói-se e desrespeita-se a vida da maioria dos cidadãos. Pô-lo novamente a funcionar é que é um duro combate. Não exige só competência; exige sentido de serviço público, convicção das vantagens de uma sociedade igualitária, e coragem para assumir os confrontos, com escala europeia, de que dependerá ter meios materiais para solucionar a avaria.

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Acabar com o SNS, esse desígnio da direita    (-J.Mendes, 3/11/2015, Aventar)



Publicado por Xa2 às 07:41 | link do post | comentar

19 comentários:
De Fisco, isenções às SGPS,fundações e pobr a 17 de Outubro de 2014 às 16:08
O problema eram as fundações

( por josé simões, http://derterrorist.blogs.sapo.pt/ 16/10/2014)


Uma das soluções para moralizar e disciplinar as contas do Estado e acabar de vez com a rebaldaria despesista socialista passava por fechar a torneira do erário público às fundações. E não digam que não porque ainda nos lembramos bem.

«As contas do Estado deixam de fora mais de mil milhões em benefícios fiscais, cerca de metade das despesas fiscais.

Só em benefícios fiscais atribuídos a Sociedades Gestoras de Participações Sociais, as SGPS, o Estado deixou de arrecadar, em 2012, 1.045 milhões de euros.
Um valor que sozinho já ultrapassa todas as despesas fiscais inscritas nesse ano na Conta Geral do Estado, que somaram apenas 1.030 milhões de euros.

Há milhões de euros em benefícios omitidos, atribuídos por reinvestimento, prejuízos fiscais, regime especial de tributação de sociedades ou até residentes não habituais em território português, entre outros exemplos.

A despesa fiscal em IRC, IVA e Imposto de Selo está subavaliada. Em imposto único de circulação não está sequer quantificada [...]»

---- http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=24&did=165425

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Mais pobres e a ganhar menos do que em 1974.

Um em cada quatro portugueses está em risco de pobreza e quem recebe o salário mínimo ganha menos 12 euros do que em 1974, descontando a inflação, segundo os últimos dados divulgados pela base de dados Pordata.

Portugal era, em 2011, o nono país da União Europeia com uma taxa de risco de pobreza mais elevada. No ano passado, havia 360 mil pessoas a receber o Rendimento Social de Inserção, quase metade delas com menos de 25 anos.

De acordo com a Pordata, o país é o sexto da União Europeia com maiores desigualdades de rendimentos.

Outros números, do Instituto Nacional de Estatística, indicam que 29,3 por cento da população infantil encontrava-se, no ano passado, em privação material, ou seja, sem acesso a três bens de uma lista de nove considerados importantes,

São os números que indicam que o risco de pobreza das famílias com crianças dependentes se tem vindo a agravar, tal como se tem agravado a taxa de intensidade de pobreza, e a diferença entre Portugal e a média da União Europeia.

No dia em que se assinala o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza, a organização não-governamental Oikos lembra também que mais de mil milhões de pessoas passam fome em todo o mundo e há 200 milhões de desempregados.
---- http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=25&did=165607


De Banco Alimentar FRACOS Jonet a 4 de Novembro de 2015 às 11:26
Os fracos, os mais fracos e os mais fracos dos mais fracos
(- Aventar, 4/11/2015 por António Fernando Nabais)

O Estado Social, segundo Isabel Jonet (pres. do Banco Alimentar contra a fome), deve limitar-se a ajudar os mais fracos dos mais fracos. O Estado Social não deve, portanto, ajudar os que são apenas fracos, porque os fracos, no fundo, são fortes e fortes do pior tipo. O fraco é um forte que se limita a fazer força para parecer fraco. Não é por acaso que dos fracos não reza a História: não porque não sejam fortes, mas porque não são suficientemente fracos. Para Isabel Jonet, fraqueza é algo que se resolve com um copo de água e açúcar.

E os mais fracos? Não deveria o Estado Social ajudá-los? Os mais fracos são só fraquinhos, gente tão desprezível que é olhada de lado pelos fracos. Cálculos recentes permitem, aliás, saber que um fraco terá a força de dez mais fracos.

Os mais fracos terão, todavia, força suficiente para, pelo menos, pedir esmola, o que isenta o Estado Social do dever de os ajudar. Se os mais fracos, aliás, tiverem deficiências físicas, Isabel Jonet poderá, até, dizer-lhes: “Vá lá pedir esmola, que tem muito mau corpo para isso!” Não há, afinal, como uma boa chaga para que o mais fraco não vá chagar o Estado Social.

Sobram, então, os mais fracos dos mais fracos. Espero que, a bem da seriedade, sejam obrigados a apresentar atestados de fraqueza extrema. O candidato a esta condição deverá reunir uma série de requisitos mínimos. Está acamado e impossibilitado de se movimentar? Terá direito a ajuda do Estado Social, desde que comprove que não tem ninguém que possa ajudá-lo (caso contrário, passará à categoria de “mais fraco”). Não consegue alimentar-se sozinho? O Estado Social irá entregar-lhe uma sopa diária no passeio em que reside (se pernoitar, uma vez que seja, debaixo de um tecto, será inscrito como “mais fraco”). Respira com dificuldade e quase não tem pulso? Venha de lá o Estado Social!

A grande vantagem do mundo criado por Isabel Jonet consiste, ainda, no facto de que o Estado Social precisará de pouquíssimos funcionários, bastando um pequeno contingente de coveiros. Os fracos e os mais fracos, como é evidente, serão obrigados a cavar a própria sepultura.
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E.Biribó:
Jonéte disse:
“O Estado deve confiar às IPSS os cuidados, até porque estas estão mais próximas.
Mas não deve meter-se de mais, para coisas para as quais não tem vocação.
O papel do Estado deve limitar-se exclusivamente à garantia desses direitos, a assegurar que a gestão é correta e a satisfação das necessidades está assegurada.”

Na verdade Madame Jonéte queria dizer: o estado deve assegurar o(s tachos e o) LUCRO das IPSS (Instituições particulares de solidariedade social.),
não se meter mais no assunto, e permitir a essas IPSS escolher os seus “clientes” mais endinheirados.

Entretanto os “pobrezinhos”, esses que se lixem, e os menos pobres que os sustentem com donativos e bancos alimentares e afins.

Madame La Patrone Jonéte fazendo uso de todos os mecanismos de MANIPULAÇÂO existentes, nada fez contra a probreza.
(antes ajuda a Mantê-la e a manter o seu tacho de presidenta da caridadezinha e voluntariado...)

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AnaA:
Excelente texto!
A maior fraqueza do ser humano reside na sua pobreza de espírito.
No mundo desta “benemérita” para que serve a organização social?
Não será para que a dignidade humana, apesar de tudo, não seja destruída?!
Ou é só para “amparar” os mais desgraçados que foram pisados pelo caminho, na voragem das turbas pelo seu lugar ao sol?!
Para isso, já existe um tipo de regime:
a Lei da Selva, onde os mais fracos serão inexoravelmente destruídos e assim deixarão de poluir o ambiente, que tanto incómodo traz!


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