O mundo mudou
(-Mariana Mortágua ,5/12/2014,Expresso)
E não é de hoje. O mundo (ocidental) mudou quando, no pós-guerra, o capitalismo foi forçado a aceitar as exigências de um população que, pela primeira vez, tinha escolha quanto ao sistema em que queria viver.
O Estado Social é, ironicamente, em parte, fruto da concorrência. Não de mercado mas de sistemas económicos. E funcionou.
As cedências permitiram ao debilitado capitalismo da crise de 1930 sobreviver, fortalecer-se, e ganhar apoio popular, durante os 30 anos gloriosos que se seguiram à II Guerra Mundial.
As limitações impostas aos mercados, à circulação de capitais e ao funcionamento dos bancos produziram a estabilidade financeira necessária para que o resto pudesse acontecer.
E o que aconteceu foi crescimento económico, baseado um modelo de acumulação que, sem nunca acabar com a exploração, fazia do salário um dos pilares da procura (consumo) que o sustentava.
O mundo mudou quando este modelo deixou de ser capaz de cumprir as expectativas de bem estar e prosperidade eternas.
Quando, perante as crises dos anos 70, o recomposto capital já não esteve disposto a abdicar da sua taxa de lucro para combater o desemprego, estabilizar os preços e redistribuir riqueza.
A fuga foi, como não podia deixar de ser, para a frente.
O contrato social do pós-guerra começou a ser desfiado, ponta por ponta, das leis laborais à proteção social.
As restrições à finança e ao funcionamento dos mercados cairam, uma por uma, da separação da banca ao controlo de movimentos de capitais.
As grandes empresas industriais foram substituídas por fundos financeiros, o pleno emprego pela normalização do desemprego estrutural, a proteção pública dos centros estratégicos pelas privatizações, a segurança social pela flexissegurança, a solidariedade pelo empreendedorismo.
Quase tudo, quase sem exceção, foi renomeado, resignificado. O mundo mudou.
O contrato social não importa porque a acumulação não depende do salário. Há a dívida.
A dívida pública que cresceu a partir dos anos 80, fruto das privatizações e da benevolência fiscal para com o capital e os mercados financeiros.
A dívida pública que se tornou no único escape para um Estado Social, cada vez mais débil.
A dívida pública que comprou a paz social perante a falta de pudor do neoliberalismo.
A mesma dívida pública que, a partir dos anos 90, se tornou uma arma de chantagem para sempre menos Estado,sempre mais liberalizado.
E a dívida privada, que, perante a compressão dos orçamentos públicos, alimentou os mercados, mascarou as desigualdades e sustentou o sistema, sob uma falsa teoria de racionalidade e auto-regulação dos mercados financeiros.
Mas o mundo voltou a mudar.
O modelo de acumulação baseado na especulação com dívida privada mostrou-se demasiado volátil, demasiado perigoso, ruiu.
Foi preciso chamar os Estados, pôr o mecanismo do endividamento público a funcionar para salvar um regime naufragado. E o capitalismo fez das fraquezas força.
Se, em 1945, foi obrigado a ceder para sobreviver, no mundo liberalizado e financeirizado de 2007 fez da sua capacidade para gerar crises - crise das contas públicas, crise financeira, crise económica - um instrumento de recuperação.
E o mundo, a Europa, o país, obedeceram.
Privatizou-se mais, liberalizou-se mais, precarizou-se mais.
Criaram-se até novas leis, novos tratados, novas constituições para garantir que nunca mais o poder político se poderia sobrepor à vontade dos mercados.
Limites para os défices, limites para a dívida, limites para a despesa pública, limites para a democracia. Austeridade.
Tudo o que for preciso para evitar mais uma crise, mais custos, mais desemprego.
O mundo mudou. Já não estamos em 1950, sequer em 1980.
Os mercados não fazem compromissos, simplesmente porque não precisam de os fazer. É preciso 'recuperar a confiança' , reganhar os lucros estoirados em 2007.
Há que aumentar a 'competitividade', tornar o Estado mais 'leve', 'moderar' o acesso à saúde, aumentar a 'felxibilidade' laboral.
Renomear, resignificar. Novos conceitos para descrever estratégias antigas.
Expandir mercados para áreas que dele estavam protegidas - saúde, segurança social, educação - e aumentar a exploração sobre a grande maioria dos trabalhadores ...