Sábado, 18 de Janeiro de 2014

    Cérebros  em  saldo   (-por D.Oliveira, 17/1/2014, Arrastão e Expresso online)

Gráf. do PÚBLICO

     A prioridade de investimento na Investigação e Desenvolvimento (I&D) é um dos poucos consensos nacionais virtuosos das últimas décadas. Isso levou a uma autêntica revolução neste sector. Portugal, que em 1986 estava na cauda da cauda da CEE em número de investigadores (ou em atividade diretamente ligada à investigação), pode apresentar hoje números europeus bastante atrativos.

     Uma das queixas, nesta matéria, é que, apesar deste salto, temos menos doutorados a trabalhar nas empresas do que a maioria dos nossos parceiros europeus. É verdade. E isso tem muito a ver com o atraso estrutural do nosso tecido produtivo, muito baseado em serviços localizados, protegidos e que acrescentam pouco valor ao que produzem, e do ainda reduzido investimento privado em I&D. A maioria das empresas tem demorado algum tempo a aproveitar a qualificação da nossa mão de obra. E não é só em relação aos nossos doutorados.

     Ainda assim, os sectores que hoje se mostram mais competitivos (o calçado ou o vinho) e que têm conseguido contrariar o ambiente de crise são os que aproveitaram (e acompanharam) este enorme investimento em I&D. Portugal tem, apesar de todos os erros e do euro, que dificultou a vida à nossa economia, mais capacidades para ser competitivo hoje do que tinha há 20 anos.   Porque é mais qualificado.  Isso resulta dum trabalho de décadas.  E não nos enganemos :  como nunca poderemos competir com a mão de obra mais barata, apenas quem aproveite o trabalho qualificado e a inovação científica e tecnológica terá algum futuro no mercado aberto. (Apesar de aceitar esta abordagem, deixo para uma nota final o excesso de simplicidade desta visão*.)

     As últimas duas décadas foram, nesta matéria, duas décadas ganhas. Não terá sido o único, mas Mariano Gago, como ministro da Ciência, é talvez o rosto mais evidente desse enorme salto científico e cultural. O que lhe tem merecido o respeito generalizado, à esquerda e à direita.

     Na evolução da investigação científica as bolsas atribuídas pelo Estado têm um papel central. É assim em todo o lado e ainda mais em países com algum atraso económico, onde falta massa crítica às empresas. Sobretudo às mais pequenas, que representam uma grande parte da nossa economia. As bolsas de doutoramento e pós-doutoramento garantidas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) chegaram, em 2007, a 2031 e a 914, respetivamente. Um número europeu e que resultou do trabalho de vários governos.

     Para além das bolsas, houve um esforço para dotar os centros de investigação de pessoal e meios e preparar a urgente renovação dum sector. Para permitir que tal acontecesse, Mariano Gago criou vários tipos de contratos, para investigadores reforçarem os quadros dos centros de investigação, nomeadamente no âmbito dos Laboratórios Associados e do programa Ciência. Tratava-se duma situação de precariedade (na maior parte dos casos, os contratos eram de 5 a 10 anos), que ninguém deseja. Mas a comunidade científica vivia na convicção de que pelo menos os melhores seriam absorvidos pelo sistema quando a renovação de pessoal acontecesse.

    Por fim, assistimos todos os anos nas últimas duas décadas a um aumento do investimento nacional (em percentagem do PIB) em I&D. Em 1995 o investimento público em I&D estava em 0,4% do PIB, em 2012 estava em 0,9%, apenas a uma décima do defendido como ideal pela União Europeia. Infelizmente, estamos muitíssimo longe dos recomendados 2% do PIB em investimento privado em I&D (é menos de metade). Ainda assim, também esse teve uma evolução paralela e semelhante ao que aconteceu no sector público.

    Infelizmente, os últimos três anos romperam com o consenso político que vigorava até aqui. Aliás, um dos principais papéis de Nuno Crato tem sido romper com os melhores consensos que vigoram na sociedade portuguesa, alimentando-se, para o fazer, dos piores lugares comuns que nela medram com facilidade: a nossa escola é facilitista (afinal, segundo os relatórios do PISA, há 10 anos que melhoramos a preparação dos nossos estudantes), somos um país de doutores (apesar de termos duplicado o número de licenciados em dez anos, estamos em oitavo lugar a contar do fim na Europa dos 27) e apostamos só na áreas de letras, sem interesse económico (somos o país europeu onde mais aumentaram as licenciaturas em ciências).

    Regressando à vaca fria. Desde 2010, o número de bolsas da FCT, sem as quais a investigação científica perderá muito mais do que o dinheiro que será poupado, começaram a cair. Mas nada que tenha paralelo com a queda a pique que aconteceu este ano. Foram divulgadas, na quarta-feira, as bolsas atribuídas. Trata-se duma hecatombe na investigação científica nacional. Dos 3416 candidatos para bolsas de doutoramento, só 298 as viram aprovadas. No caso dos pós-doutoramentos, os candidatos foram 2305 e só 233 a vão receber. Num e noutro caso, os números estão abaixo dos 10% de aprovação, coisa nunca vista (nas ciências sociais, dispensáveis para quem tem vistas curtas, estão abaixo dos 6,5%).

     No caso dos pós-doutoramentos, houve uma diminuição de atribuição de bolsas de 65% em relação a 2012. Nos doutoramentos, a diminuição foi superior a 70%. É uma razia. Se acrescentarmos os novos "programas doutorais FCT" (muitíssimo mais limitados), geridos pelas universidades e centros de investigação, a redução continua a ser brutal: de 40%. O número de bolsas atribuídas atira Portugal para o ponto em que estava no início dos anos 90. São duas décadas de recuo.

    Em relação a quem trabalha nos centros de investigação, as coisas estão a seguir o mesmo caminho. A nova geração de investigadores está a sair dos centros de investigação para o desemprego. Os que ficam, com "contratos de investigador FCT", que duram cinco anos e foram criados o ano passado, são muito poucos, até porque estes contratos também visam atrair investigadores estrangeiros. Na realidade, o trabalho regular da maioria dos centros de investigação está seriamente comprometido e Portugal prepara-se para um retrocesso sem precedentes nesta área.

     A  FCT, centro nevrálgico do sistema público de apoio à ciência, que por natureza depende da sua credibilidade, tem visto a sua imagem degradar-se permanentemente, com pequenos escândalos e situações de opacidade muito pouco recomendáveis, sobretudo no que envolveu a nomeação dos seus conselhos científicos. No caso do concurso Investigador FCT, um grupo de investigadores acusou abertamente a Fundação de falta de transparência, coisa nunca antes vista no universo dos investigadores, habitualmente comedidos. A exigência devia começar em casa. Mas, para Nuno Crato, tem sido apenas retórica.

     Por fim, tivemos, em 2012, a primeira quebra de investimento público (em percentagem do PIB) em I&D dos últimos vinte anos. E não é preciso ser bruxo para perceber que essa queda passará a ser um trambolhão em 2013. Isto quando esse investimento começou a ser reduzir no privado, fruto da crise, logo em 2010.

     Como disse no início deste texto, as consequências do enorme investimento em I&D, feito nas últimas décadas, só se começaram a sentir recentemente, em alguns sectores exportadores, na inovação tecnológica e com uma geração muitíssimo mais qualificada a entrar na vida ativa. Destruir isto será muito mais rápido. E traduz-se num desperdício de esforço e investimento que não tem perdão.

     Temos falado muito da perda de pessoal qualificado.  Estamos basicamente a falar de licenciados ou de jovens com formação técnica específica. Mas o que agora preparamos é a fuga dos mais qualificados entre os qualificados: doutorados, pós-doutorados e investigadores.  Sem forma de sobreviver ou de progredir na carreira, irão fugir daqui.   O dinheiro que gastámos, e que tanta falta nos fazia, será aproveitado por outros países, sem que isso tenha qualquer retorno.  Andámos, no fundo, a formar pessoas para os outros. Os que não conseguirem, por compromissos familiares, pela idade ou por a sua área de formação apenas ter utilidade em Portugal, ou ficarão inativos ou ocuparão postos de trabalho para os quais estão sobrequalificados. Um país em dificuldades que dispensa a mais qualificada de todas as suas gerações é um país sem visão. Um país que dispensa os mais qualificados dessa geração é irresponsável.

     Tenho ouvido, do governo, que não quer assentar a competitividade portuguesa em baixos salários. A realidade diz o oposto, mas seria inteligente que não quisesse. Haverá sempre países mais baratos e com mais mão de obra disponível. A alternativa a isso é acrescentar valor ao que se produz, ter um Estado servido por gente preparada, qualificar a mão de obra e apostar na investigação que levou, por exemplo, a Universidade de Aveiro a, em parceria com a PT, criar coisas tão globalizadas como o cartão pré-pagou ou a Via Verde (ou o motor de busca SAPO).  Nenhum país no planeta conseguiu promover tudo isto (qualidade, inovação e qualificação) reduzindo o investimento em Investigação e Desenvolvimento, reduzindo bolsas públicas e estrangulando a investigação científica. Ficamos por isso a perceber que não há qualquer rumo, qualquer estratégia, qualquer visão por parte deste governo.

         * Tenho alguma dificuldade em comentar as declarações de Pires de Lima, que, para justificar este corte criminoso (sem o assumir), lamenta que uma parte da investigação financiada não chegue "à economia real" e não tenham "resultados concretos que beneficiem a sociedade".  É de esperar que se tenha de explicar a alguém com poua informação que o processo de investigação científica é mais ou menos cumulativo e que há muitas descobertas aparentemente inúteis a montante de cada utilidade.   Que os cientistas aprendem uns com os outros e não é fácil avaliar assim, de forma linear e clara, à partida, a imediata utilidade prática duma investigação.  Que nenhum país que aposta na investigação consegue esse milagre que ele pretende: uma ciência pronta a ser consumida pela sociedade.  Que a ciência não é um pronto-a-vestir e que não há um "simplex" que garanta o conhecimento na hora.  Que muitas coisas que hoje multiplicam riqueza nasceram de descobertas que não procuravam o lucro e que até pareciam de pouca utilidade para a "vida real".  Arrisco-me à suprema das heresias :  que as empresas não são o único destinatário nem da investigação científica, nem da existência humana.  Há a saúde, a educação, a cultura e a pura e simples procura do conhecimento, coisas de que os humanos, esses preguiçosos, dependem desde que existem para se considerarem como tal.   Mesmo antes de haver empresas.   Que há áreas científicas com muito pouco interesse para as empresas, como a História, por exemplo.  Devemos acabar com elas ?   E que o tempo da ciência não é, porque não consegue ser, muitas vezes, o tempo do retorno imediato do investimento.   E, no entanto, sem a investigação que não garante "resultados concretos" a curto-prazo quase tudo o que as empresas vendem dificilmente teria chegado a ser inventado.   Explicar isto a um ministro que não me parecia ser ignorante é embaraçoso.   Não para quem explica, mas para o ministro.



Publicado por Xa2 às 07:44 | link do post | comentar

1 comentário:
De ESTADO e liberalismo de pacotilha. a 23 de Janeiro de 2014 às 10:20
Sem Estado não havia Apple
por ANDRÉ MACEDO,



Li e reli a entrevista que o presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia deu ao Público. O que o dr. Seabra disse naquelas páginas não me tranquiliza em nada quanto às suas competências para desempenhar o lugar. Fiquei, aliás, esclarecido sobre a evidente incapacidade para ajudar a ciência a atravessar a atual míngua financeira.

Talvez faça sentido começar por aqui. Numa altura de monumental aperto seria impossível manter o mesmo nível de investimento público realizado a partir de 2005 - ainda assim abaixo da média da UE.
O endividamento do País teria de sentir-se de alguma maneira. Ignorar este ponto e desprezar o contexto é tão asno como os argumentos do género:
se não há dinheiro para o leitinho das crianças e para as pensões dos velhinhos, então não pode haver para os malucos dos cientistas.
A discussão beligerante que hoje contamina tudo em Portugal é das consequências mais trágicas da Grande Recessão.

Mas afinal para que serve o investimento público em ciência? Que riqueza traz?
Nas reportagens que li sobre as manifestações dos bolseiros que aconteceram anteontem, as inquietações não eram naturalmente estas; eram mais pessoais.
Há gente, nem toda ela boa, que vai perder o emprego e não sabe o que fazer à vida. Não é um assunto menor, mas a bem dos próprios investigadores também não devia ser a única abordagem sobre a mesa. Um tema de impacto nacional, a ciência - seja em que domínio for -, fica assim limitado à sua manifestação mais básica.

Mas não são apenas os bolseiros a afunilar o debate. Nuno Crato incentiva a mediocridade.
O título da entrevista do presidente da FCT, que o ministro da Educação tutela, é toda uma tese de doutoramento. Diz ele:
"Queremos que a ciência esteja cada vez menos dependente do Orçamento do Estado."
Cá está o liberalismo de pacotilha:
tudo o que é Estado é horrível, tudo o que é privado é o nirvana.

Não importa ao dr. Seabra que os grandes avanços científicos que abriram caminho a coisas tão prosaicas como a internet, o GPS, a nanotecnologia - isto é, o iPhone, o iPad, medicamentos espantosos e outras maravilhas da economia privada - tenham na sua origem investigação paga e dirigida por dinheiro público.

A Apple não existiria se o Governo americano não tivesse, décadas antes e de forma persistente, investido na incerteza que os privados por definição rejeitam.
Silicon Valley e os míticos empreendedores de garagem existem, sim, mas em regra beneficiam do esforço incremental que foi (é) desenvolvido por universidades e laboratórios financiados pelos impostos.
Os ciclos económicos importam, claro, mas não podem dinamitar tudo. O Estado não tem de comercializar barcos, nem vender telemóveis, mas também não pode sumir-se.
Não basta ser regulador e garçon dos privados. Há riscos de partidarização? Há.
Mas também há o perigo de ficarmos reduzidos a um país de técnicos garagistas, embora diplomados.


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