Sem Estado não havia Apple
por ANDRÉ MACEDO,
Li e reli a entrevista que o presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia deu ao Público. O que o dr. Seabra disse naquelas páginas não me tranquiliza em nada quanto às suas competências para desempenhar o lugar. Fiquei, aliás, esclarecido sobre a evidente incapacidade para ajudar a ciência a atravessar a atual míngua financeira.
Talvez faça sentido começar por aqui. Numa altura de monumental aperto seria impossível manter o mesmo nível de investimento público realizado a partir de 2005 - ainda assim abaixo da média da UE.
O endividamento do País teria de sentir-se de alguma maneira. Ignorar este ponto e desprezar o contexto é tão asno como os argumentos do género:
se não há dinheiro para o leitinho das crianças e para as pensões dos velhinhos, então não pode haver para os malucos dos cientistas.
A discussão beligerante que hoje contamina tudo em Portugal é das consequências mais trágicas da Grande Recessão.
Mas afinal para que serve o investimento público em ciência? Que riqueza traz?
Nas reportagens que li sobre as manifestações dos bolseiros que aconteceram anteontem, as inquietações não eram naturalmente estas; eram mais pessoais.
Há gente, nem toda ela boa, que vai perder o emprego e não sabe o que fazer à vida. Não é um assunto menor, mas a bem dos próprios investigadores também não devia ser a única abordagem sobre a mesa. Um tema de impacto nacional, a ciência - seja em que domínio for -, fica assim limitado à sua manifestação mais básica.
Mas não são apenas os bolseiros a afunilar o debate. Nuno Crato incentiva a mediocridade.
O título da entrevista do presidente da FCT, que o ministro da Educação tutela, é toda uma tese de doutoramento. Diz ele:
"Queremos que a ciência esteja cada vez menos dependente do Orçamento do Estado."
Cá está o liberalismo de pacotilha:
tudo o que é Estado é horrível, tudo o que é privado é o nirvana.
Não importa ao dr. Seabra que os grandes avanços científicos que abriram caminho a coisas tão prosaicas como a internet, o GPS, a nanotecnologia - isto é, o iPhone, o iPad, medicamentos espantosos e outras maravilhas da economia privada - tenham na sua origem investigação paga e dirigida por dinheiro público.
A Apple não existiria se o Governo americano não tivesse, décadas antes e de forma persistente, investido na incerteza que os privados por definição rejeitam.
Silicon Valley e os míticos empreendedores de garagem existem, sim, mas em regra beneficiam do esforço incremental que foi (é) desenvolvido por universidades e laboratórios financiados pelos impostos.
Os ciclos económicos importam, claro, mas não podem dinamitar tudo. O Estado não tem de comercializar barcos, nem vender telemóveis, mas também não pode sumir-se.
Não basta ser regulador e garçon dos privados. Há riscos de partidarização? Há.
Mas também há o perigo de ficarmos reduzidos a um país de técnicos garagistas, embora diplomados.
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