Liberdade, democracia e deliberação
A principal crise do nosso tempo é democrática. Claro que a crise económica potencia a crise democrática. Mas a crise democrática é a mais decisiva das nossas crises. A democracia ocidental estrutura-se essencialmente à volta de três eixos: o eixo da liberdade (de expressão e económica), da igualdade (do equilíbrio na distribuição dos rendimentos económicos e sociais, perante a lei e de dignidades pessoal e familiar) e da democracia em sentido estrito, i.e., no sentido em que os cidadãos legitimam, com as suas escolhas individuais e colectivas, quem governa. Ora, estes três eixos estão em grave risco, senão em desabamento. O impressionante é que uma parte substancial das elites político-económicas se recuse, por um lado, a encarar a evidência destas crises e, por outro, contribua activamente para o seu aprofundamento. (...)
A crise da democracia como crise de legitimidade das formas de governação manifesta-se na crise do sistema representativo de eleição. Na esmagadora maioria dos casos, os representantes desligam-se dos representados, não reconhecendo valor à substância das razões pelas quais foram eleitos, podendo mesmo governar com base em razões que lhes são inversas, contra os interesses dos próprios representados.
A ideia de sermos governados por representantes e não diretamente tem, no essencial, que ver com duas razões: com a ideia segundo a qual as decisões políticas exigem um certo tipo de mediação discursiva e técnica entre as vontades individuais dos representados e as decisões finais, para as quais os representantes e o seu enquadramento institucional estão especialmente preparados; com a quantidade e complexidade das decisões das sociedades contemporâneas, por definição incompatíveis com as possibilidades decisionais diretas.
Acontece que o “serviço” de mediação decisional dos representantes tem, simplesmente, falhado, indo vezes de mais ao arrepio dos interesses da maioria esmagadora dos representados. Algo de estranho ocorre num sistema em que a “mediação” tem, tantas vezes, o estranho efeito de se virar contra os interesses da fonte da soberania democrática, os eleitores, como se o racional da decisão dos políticos fosse, por natureza, diverso do racional da deliberação popular.
... Mas a representação precisa de ser melhorada, sendo-lhe acrescentados mecanismos de escolha direta dos cidadãos. Ao contrário do que, por exemplo, Francisco Assis escreveu (“O problema das nossas democracias... não reside numa insuficiência de transparência, num excessivo distanciamento no interior dos mecanismos de representação, num défice de sufrágio e de fiscalização públicos”), o problema da nossa democracia não é representação/mediação a menos mas representação/mediação a mais, ao ponto de a mediação ter substituído a coisa mediada, tendo-se afastado completamente dela. Num certo sentido, é preciso retomar algum do impulso democrático originário (grego e romano), aquele em que os cidadãos estavam diretamente presentes às decisões sobre a sua vida concreta. Ora, nos antípodas do que aqui defendeu F.Assis, aquilo a que hoje se assiste no nosso sistema político não é à recusa da política mas antes à monopolização da decisão política por parte de uma oligarquia política, com recusa das instâncias concretas e vivas de mediação e deliberação sociais. Claro que a oligarquia pode dar-se ares de aristocracia e dizer que essa deliberação “viva” não tem valor racional, que não passa de uma “turba” economicamente sobredeterminada (como se essa sobredeterminação simplesmente não existisse ou, a existir, não tivesse nenhum valor). Mas isso não é mais que a confirmação do que, afinal, se quer negar. A de que certa oligarquia política tomou para si o exclusivo da mediação e deliberação racionais, tomando-se como juiz exclusivo não só do que é democrático mas também do que é racional. A “progressiva castração do discurso e da acção políticos”, como escreve Assis no texto referido, não derivam de um excesso, ou falta, de deliberação popular e social mas de um deficit, na verdade uma anulação, dessa deliberação, substituída por poderes fácticos instalados sobretudo no ambiente e no contexto dos processos de deliberação representativa (ainda que também no âmbito da deliberação popular direta), de que as relações espúrias, mas às claras, dos governantes com os poderes económicos e bancários são, mais que evidentes, verdadeiramente esmagantes. O discurso de F.Assis sobre o assunto parece, assim, um caso típico de obsessão: se a mediação e a representação política tradicionais falham por se afastarem da coisa a mediar, instilemos mais mediação e mais representação, afastemo-nos ainda mais da mediação deliberativa popular e social, supostamente transida de irracionalidade (“Essa é a conversa dos demagogos”).
Por sua vez, a crise da democracia tem diretamente que ver com a crise da igualdade como valor fundamental. Os conflitos políticos articulam interesses e diferenças entre grupos sociais. Se a deliberação democrática se torna um exclusivo da representação política tradicional, a tendência natural é o reforço da oligarquia político-institucional-económica, dadas as suas íntimas articulações. Assim sendo, quanto mais a democracia deliberativa se rarefaz no regaço de uma oligarquia, mais a desigualdade social e económica se acentuam, através dos mais diversos meios, como seja acabando com os principais instrumentos de ascensão social como a escola pública, o acesso à universidade ou desequilibrando as relações de força entre os empresários e os trabalhadores.
Debilitadas a democracia e a igualdade, a liberdade encolhe necessariamente. Desde logo a liberdade de expressão. O acesso dos mais pobres aos meios de comunicação de massa mais prestigiados, mais racionais, o principal recurso para a obtenção de discursos racionais oficiais, torna-se quase impossível. A sua propriedade e acessibilidade por parte da oligarquia económica facilitará, necessariamente, o acesso aos seus aliados preferenciais, a oligarquia política, a partir da qual poderá decidir sobre a natureza do que é e não é racional, legitimando e deslegitimando os discursos, até uma cisão definitiva (?) entre o povo e os representantes, os racionais e os irracionais. Mas a perda da liberdade de expressão manifesta-se também, e talvez fundamentalmente, pela despolitização dos âmbitos sociais públicos e privados, onde as racionalidades que exprimam as conflitualidades e as cisões sociais serão, são, deslegitimadas e, até, proibidas, por instabilizarem aquilo que é dado por politicamente correto, o mesmo é dizer, racional. A análise do perigo de dissolução da ideia e da prática das liberdades expressivas e políticas poderia ir mais longe, mas não há espaço.
Termino como comecei. Sim, a democracia, a igualdade e a liberdade estão em crise. E sim, há uma divisão entre a direita e a esquerda sobre a natureza destes desafios, que passa pelo reconhecimento da deliberação e participação cívicas, sociais e pessoais, percebendo a necessidade urgente da renovação da mediação e deliberação política institucional, recuperando e rejuvenescendo as velhas tradições republicanas da cidadania ativa e das escolhas diretas.
A bofetada de luva branca de Dilma Rousseff
(-por F. Louçã, 28/10/2014, http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2014/10/28/a-bofetada-de-luva-branca-de-dilma-rousseff/ )
Dilma nem cuida disso, mas a sua campanha e o seu discurso de vitória são uma bofetada de luva branca a muita gente em Portugal: a reeleita Presidente do Brasil garante que vai propor um referendo para uma reforma eleitoral que imponha um
sistema proporcional de listas partidárias,
ou seja, como o português – destruindo o sistema de voto preferencial que vigora actualmente no Brasil. A justificação para essa mudança essencial é que o sistema hoje em vigor é um dos canais da corrupção.
Esta iniciativa não podia contrastar mais com o tom do debate em Portugal, que vai no sentido contrário, porque se sugere uma aproximação ao sistema brasileiro.
As propostas que estão em cima da mesa entre nós vão da introdução do voto preferencial (Costa Lobo)
à dos círculos uninominais (PS e PSD):
num caso é uma versão do modelo brasileiro, noutro é uma proposta ainda mais radical.
Em medidas diferentes, têm em comum a ideia de que a concorrência pessoal
introduz um novo elemento de animação nas campanhas eleitorais e, assim, poderia reduzir a abstenção, porque o espectáculo se torna mais apelativo.
Não há dúvida de que esse efeito pode realizar-se, mesmo que episodicamente. O problema é se as vantagens do espectáculo superam as desvantagens da destruição de mecanismos de controlo, que já de si são frágeis:
os deputados passam a ter uma legitimidade independente dos programas e da vida dos seus partidos (e é esse o primeiro factor que facilita a corrupção)
e vão financiar as suas campanhas pessoais com apoios da oligarquia financeira (e esse é o segundo e principal factor para a corrupção).
É o que Dilma promete combater com um referendo nacional, nada menos.
Em todo o caso, ao sugerirem uma aproximação ao modelo brasileiro, ambos os sistemas que estão a ser propostos em Portugal exigem campanhas que têm duas grandes diferenças em relação ao que conhecemos agora, e são nos dois casos diferenças prejudiciais ou que favorecem a corrupção.
A primeira diferença é que estas campanhas pessoais são muito mais caras. E são cada vez muito mais caras. No caso dos Estados Unidos, as contas estão feitas: o custo da eleição de cada membro da Câmara de Representantes subiu entre 1974 e 1990 de 56,5 para 410 mil dólares, de 1990 até 2006 chegou a 1,25 milhões, e agora deverá ser o triplo. As campanhas norte-americanas de 2012 custaram 7 mil milhões de dólares. No caso do Brasil, fiz há um ano um conferência para a bancada parlamentar do PT no Rio Grande do Sul e o seu presidente explicou-me que o preço de uma campanha ganhadora de um deputado estadual (não nacional, mas regional) ultrapassava o milhão de dólares. E se as campanhas são cada vez mais caras, alguém vai pagar e esse alguém pedirá a retribuição dos favores.
Tem de ser assim. Com estes modelos, haverá sempre não uma campanha, referida a uma candidatura nacional (de uma lista distrital, um “candidato a primeiro-ministro” e um programa), mas tantas campanhas como os candidatos e candidatas, que têm de ter os seus cartazes, material próprio, funcionários, sedes e comícios pessoais e tudo aquilo a que tiverem direito. Isso vai tudo ser pago de algum modo e quanto mais dinheiro mais possibilidades eleitorais – e mais riscos de corrupção.
Em segundo lugar, as campanhas de base pessoal são disputas entre partidos mas também, no caso do voto preferencial, entre candidatos do mesmo partido. Para ser eleito, o Zé tem de ter mais votos do que a Maria e, como os vão buscar aos apoiantes do mesmo partido, tem de criar, marcar ou multiplicar diferenças apelativas e elegíveis. Por isso, estes modelos acentuam os particularismos e as promessas: são um moinho de demagogia (ainda mais do que no sistema actual, perguntará o leitor? sim, ainda mais). A candidata ou candidato que quer ganhar ao outro candidato do mesmo partido vai ter de promover a diferença em relação ao concorrente. O populismo é o filho desta necessidade. As campanhas pessoais serão infinitamente mais populistas do que as de hoje, e o panorama actual já não é tranquilizador.
Dilma está a avisar-nos da Corrupção e Populismo no sistema eleitoral..
O Prof. e constitucionalista Jorge Reis Novais em entrevista no Público de hoje:
Fala-se na maior aproximação entre eleitores e eleitos… Admitamos que era isso, mas o que é que se propõe alterar para aproximá-los? Ciclicamente aparece uma mezinha. A última é o voto preferencial, como os círculos uninominais foram durante muito tempo.
Mas estão previstos na Constituição, como a redução do número de deputados… E mesmo o voto preferencial é possível. Mas que vantagens traria? Dar ao eleitor a possibilidade de hierarquizar os candidatos. Mas quando comparamos essa pretensa vantagem com os seus inconvenientes, são de tal ordem que esta proposta se torna absurda. Por exemplo: o círculo de Lisboa elege quase 50 deputados. Cada partido, imagine-se 20 partidos, apresenta 40 deputados ou mais. Hoje, o eleitor vota num partido. Com o voto preferencial, o eleitor teria de levar para a cabine de voto a lista dos mil candidatos que se candidatam ao círculo de Lisboa. Além disso, não conhece as pessoas, acabaria por escolher os nomes mais populares, um artista de telenovela, um jogador de futebol… é o que acontece em países como a Itália, o Brasil. E o que é que dá? Como cada candidato faz uma campanha própria, os da mesma lista acabam por fazer campanha uns contra os outros. Em vez de ser um confronto entre propostas diferentes, seriam confrontos entre pessoas. Além de que a maioria das pessoas nem sequer vai ordenar, por isso a vontade de uma minoria é que ia vingar.
Este afastamento entre eleitores e eleitos não tem a ver sobretudo com a atitude dos eleitos? Como responsabilizar mais os eleitos?
A insatisfação é muito devida ao facto de as pessoas não encontrarem respostas, e por isso se dizem insatisfeitas com a democracia. Isso é verdade e indiscutível, revela-se nas sondagens, na abstenção. Mas o remédio é mexer no sistema eleitoral? Mas a questão da responsabilidade não se resolve com o voto preferencial . Pelo contrário, o voto preferencial promove o populismo, o localismo e a demagogia.
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http://otempodascerejas2.blogspot.pt/2014/11/nao-me-importo.html
http://blogs.publico.es/arturo-gonzalez/2014/10/29/yo-no-le-perdono/
Yo no le perdono
(eu não lhe perdoo)
España, esperemos que provisionalmente, ha dejado de ser una democracia. No nos dejemos seducir porque votemos cada cuatro años.
Nuestro país ha caído en una oscura y profunda sima que la priva de tal condición. Dos de los avances éticos más importantes de la Humanidad,
la presunción de inocencia y que no se pueda condenar a nadie sin pruebas,
se han destruido en la sociedad española, merced al abuso que el Gobierno del Partido Popular ha hecho de su mayoría absoluta.
Resulta evidente que la casi totalidad de los españoles, anegada por los miles de casos de corrupción,
han dejado de creer en la presunción de inocencia y estiman, en mi parecer, que todos los cargos públicos del país, en cualquiera de sus escalones, son corruptos o potencialmente corruptos.
Y, radicalizando criterios, esa misma inmensa mayoría no necesita pruebas para condenar. A los miles de imputados actuales los condenarían severamente y sin más espera ni juicio.
Cuando una sociedad adopta estas dos realidades, deja de ser democrática y se convierte en totalitaria, pasando a ser una democracia puramente formal y sin respaldo político.
Si a ello añadimos la enorme exclusión social y económica, rayana en la pobreza,
de una buena parte de sus ciudadanos, el drama del descrédito democrático se hace patente.
La zorra (raposa) no puede cuidar el gallinero ni hacer reformas en él. No puede prometer que va a ser buena.
El señor Rajoy ha pedido perdón a los españoles por la corrupción aparecida en su partido, promete limpieza y pide confianza porque la justicia y las instituciones funcionan.
¿Por qué creerle, cuando hasta ahora lo ha negado todo? Pretende alargar su mandato, amparándose en la lentitud de la justicia con procesos interminables, cierto que por su complejidad.
Pero los españoles también son reacios a esta lentitud. Quieren justicia ya.
Aun con las benévolas leyes que deben aplicar los jueces. Y mientras tanto España seguirá en la sima de la desconfianza.
Un moderno esperpento de país, un país descabalado, un país de rencores y resignaciones, en el que, por fortuna, de momento no se prevén revueltas violentas a causa de la indignación y el descontento social.
Pedir perdón y quedarse de zorra no es el remedio. Porque muchas gallinas no le perdonamos. Bueno, sí. Yo le perdonaría si se fuera.
De verdad, sin resentimientos, sin guardarle enconos por la herencia que recibiríamos.
Ha felicitado a todos los corruptos. Se ha convertido en una persona dañina para España, ha quebrado usted la democracia.
De .P.Comunista vs Capitalismo neoLiberal. a 10 de Novembro de 2014 às 15:05
Comentário de Miguel a 10.11.2014 , ao post «http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/comunismo-nunca-mais-6828820#comentarios » sobre os 25 anos da queda do muro de Berlim.
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Para não dizer que Milton Friedman, o grande apóstolo do Capitalismo como Democracia, sem quaisquer problemas de consciência, foi o conselheiro económico na ditadura de Pinochet;
que ganhou o poder através de um golpe de estado levado a cabo pelos americanos em 1973;
que foi apenas uma réplica do golpe de estado que conduziram contra a democracia iraniana em 1954; do qual resultou a tirania do Shah e mais tarde a Revolta dos Aiatolas contra ela;
que hoje ainda governa o país, para mal dos iranianos que não têm democracia há mais de 60 anos por causa da grande democracia americana.
Pode-se imputar tanto horror e maldade às tais democracias capitalistas,
antes do Muro de Berlim e especialmente depois da queda da União Soviética, que a dificuldade é saber
que exemplos escolher do grande manancial à disposição de cada pessoa com um pouco de curiosidade.
E estas coisas acontecem todos os dias, e o muro foi há 25 anos, mas pára-se um dia inteiro para o recordar
quando eu, que saiba, nunca vi o Delito de Opinião se preocupar pelos constantes assaltos à democracia perpetrados por outras democracias.
Preocupam-se tanto com papões que nem existem mais, quando se deviam ocupar, por exemplo, dos perigos do TTIP para a soberania nacional dos países da Europa,
que isso sim, ainda pode ser evitado se a população for informada a tempo, o que não está a acontecer.
Que tal um artigo sobre isso? Ou é demasiado trabalho jornalístico para o vosso gosto?
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Temos muito menos a temer do PCP do que dos partidos do arco da governação,
que, eleitos democraticamente, usam essa valia para governarem contra os eleitores e a favor de interesses ocultos.
Os mais perigosos são aqueles que, com um sorriso nos lábios e a poder de repetir muitos chavões sobre liberdade, democracia e progresso, convencem as massas da sua idoneidade.
E o que é que temos pela Europa que não vota em comunistas?
Um antigo primeiro-ministro português que abandonou o mandato a meio para subir a um poleiro maior;
uma antiga primeira-ministra britânica que começou uma guerra com a Argentina para inverter a queda de popularidade;
um antigo primeiro-ministro italiano que controla os meios de comunicação do país e que teve de se defender em tribunal de acusações de sexo com menores;
um antigo primeiro-ministro luxemburguês envolvido num grande esquema de fraude fiscal;
um antigo ministro das Finanças francês acusado de violar uma criada, e por aí fora.
Os horrores vão-se somando a um ritmo frenético.
Sem contar, repito, com o TTIP que não anda a preocupar ninguém por agora, ainda que seja
um maciço ataque ao estado social e à soberania nacional.
E é dos comunistas que não têm qualquer poder que devo ter medo?
São eles que não podem subir ao poder?
Que país e continente masoquistas. Andam todos tão cheios de peneira porque aprenderam as lições do passado, o que é fácil de aprender;
ficaria mais impressionado se andassem a tomar ilações do presente que nos corre debaixo do nariz.
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