PANGLOSS EM LISBOA, 2014
Todas as vezes que começo estes artigos, a minha certeza é: “Lá vou outra vez escrever o mesmo”. Olho à volta e vejo mil e uma coisas mais interessantes para escrever. Por exemplo, sobre o Candide, de Voltaire, que estou a ler agora com outros olhos.
Mas a coisa está tão mal,
que mesmo com o aviso do meu Grilo Falante para deixar o presente e falar de passarinhos e nuvenzinhas e de como é belo o nosso Portugal, eu volto ao mesmo.
O país está a “dar a volta”, e eu “perturbado” “zangado”, “ressabiado”, “ignorado”, “velho”, ou “infantil” conforme a idade do autor da classificação, não vejo os excelsos “sinais da retoma” e o êxito à vista do “fim do resgate”.
E, por isso mesmo, Cândido e o seu jardim e Pangloss e a sua métaphysico-théologo-cosmolonigologie acabam a desembocar nestes
miseráveis dias de hoje, onde as pessoas de bem não podem deixar de ficar zangadas com o exercício impante de hipocrisia que por aí passa nos discursos oficiais, nos comentários oficiais, no mundo político-mediático cheio de “responsabilidade” e “inevitabilidade” e vazio.
Nuns casos, só vazio, noutros, vazio interessado e interesseiro.
É, Pangloss estaria bem nos dias de hoje, contando-nos a “narrativa” “positiva”, “optimista”, “aberta para o futuro”, “cheia de esperança nas virtudes excepcionais do povo português”, da actual situação nacional.
Ouvindo Pangloss, ouço-os a eles:
de como vivemos no melhor dos mundos possíveis, com os “sinais positivos da economia” em cada esquina,
com o fim do resgate a prazo, e a reconquista “plena” da “nossa soberania”, com o estrangeiro, até há pouco tempo perverso e desconfiado com os PIGS, agora cheio de admiração pelas virtudes do “ajustamento” português, com o “admirável esforço dos portugueses” e a capacidade excepcional das suas empresas “para dar a volta”.
Ou seja, estamos mesmo no “fim do caminho”, a “dar a volta”. Mas a “dar a volta” a quê? “Dar a volta para onde? “Dar a volta” para quem?
É por isso que não vejo muita diferença entre o que diz Portas, Passos Coelho, e Cavaco Silva e é repetido pela voz do poder.
Acresce que o PS de Seguro não conta como oposição.
Mesmo a esquerda, ao comportar-se reactivamente como um reverso do espelho do poder, não faz outra coisa senão reforçar o discurso dominante, aceitando falar a partir dele, a partir do seu quadro interpretativo, a partir da sua forma mental.
O enorme deserto do pensamento dos nossos dias vive dessa dualidade em que os temas, os modos e os tempos são definidos pelo poder e “recusados” pela oposição, dentro da mesma linguagem e aceitando muitas vezes os mesmos limites.
O discurso do poder hoje assenta num rito de passagem. Estamos em 2014, o nosso ano da “libertação do resgate”, o nosso 1640, o ano em que a troika se vai embora.
Este é o tempo, que culmina com um rito de passagem, porque o momento lustral de recuperação da “soberania” tem data.
Por isso, acentua-se o momento da “passagem”, para festejar um resultado e anunciar uma nova aurora.
É tudo ficção, porque não há nenhuma mudança substancial a ocorrer em Maio de 2014, vamos continuar presos àquilo a que já estamos presos, seja pela troika, seja pelo direito de veto de Bruxelas aos Orçamentos, seja pelo Pacto Orçamental, mas é uma ficção útil, instrumental. Festejemos.
Para que é que serve este tempo até Maio?
Para nos dizer que até lá temos que aceitar tudo, em particular esse Orçamento e as suas sucessivas revisões, cujo conteúdo miraculosamente não entra no discurso oficial, a não ser como o “instrumento necessário” para o fim do resgate, ou seja, uma coisa neutra e menor.
Discute-se e fala-se muito de uma coisa etérea, os “sinais da retoma”, e quase nada sobre uma coisa dura e sólida, o Orçamento que aumenta e muito a austeridade para 2014.
Quando vejo alguém centrar o seu discurso nos “sinais da retoma” já sei ao que vem, e já sei aquilo de que não vai falar.
A natureza do Orçamento e o que ele nos diz sobre o que se passou nestes últimos dois anos e o que se vai passar neste ano de 2014 e no futuro são deixados em silêncio.
E silêncio porque não encaixa no tom congratulatório que tão útil vai ser para as eleições europeias e as legislativas.
Aliás, o silêncio sobre as motivações eleitorais ...
PANGLOSS EM LISBOA, 2014
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... Aliás, o silêncio sobre as motivações eleitorais que já estão presentes na política do Governo é uma das grandes debilidades da análise presa ao discurso do poder.
Passos e Portas e, de modo diferente, Cavaco pensam e muito nas eleições de 2014 e 2015, primeiro para as desvalorizar e assegurar que vão ser inócuas quanto ao “ajustamento”, ou seja,
não servem para mudar políticas, depois para favorecer os partidos mais fiáveis para esse objectivo, o PSD e o CDS, e o PS de arreata.
O discurso sobre o “compromisso” tem igualmente o objectivo de levar o PS a coonestar a interpretação governamental e presidencial do “ajustamento” e torná-lo inócuo como factor de mudança em eleições.
Depois de Maio, o discurso vai mudar.
Vai-nos ser explicado, a todo o momento, “que a austeridade” não pode acabar”.
Findos os festejos, ver-se-á se há ou não plano cautelar.
A inexistência de uma discussão séria sobre um possível plano cautelar, cujo conteúdo se ignora, é um bom exemplo de como não há verdadeiro debate democrático no nosso espaço público.
Se o plano cautelar for para um ano, como disse Passos Coelho, ele terá a natureza de uma continuidade da presença da troika por outra forma, e atirará para quem governar em 2015 decisões que este Governo pretende cuidadosamente evitar em ano eleitoral.
Se for a mais longo prazo, disfarçado ou às claras, há que exigir que vá a votos, coisa de que ninguém fala ou quer e percebe-se porquê.
Depois, tudo o que não encaixa neste tempo e nesta “narrativa” ou é meramente enunciado por obrigação, ou não tem papel na interpretação.
Aqui Portas, Coelho e Cavaco falam do mesmo modo.
Diz-se umas coisas sobre o sofrimento social, mas apresenta-se como um dano colateral inevitável.
Acima de tudo, não pode servir como elemento de uma política, apenas como constatação de um efeito.
O verdadeiro sujeito do discurso são sempre “as empresas”.
Os “mais pobres” são protegidos pela assistência do Estado e pela caridade, como argumento para atacar os rendimentos dos que não são tão pobres, aqueles que “ainda têm alguma coisa”, que
, esses sim, são os alvos da política governamental, no assalto àquilo a que se chamava “classe média”.
Claro que não se diz aos mais pobres dos pobres, cujo papel retórico é importante na legitimação da política governamental, que assim fica garantido que nunca mais sairão dessa pobreza.
E fica também garantido que muitos outros se lhes juntarão.
O reverso deste discurso é a propaganda, em que muitos órgãos de comunicação participam, por folclore da “novidade” e ignorância,
dos “sucessos empresariais” dos que “dão a volta”, e fazem compotas em casa ou móveis com lixo, ou vão fazer agricultura biológica.
Para além de nunca se voltar mais tarde, nem que seja um ano depois, para ver o “sucesso” dessas microempresas,
não se diz que pura e simplesmente, mesmo que algumas tenham sucesso, são uma gota de água na desgraça geral e acima de tudo que
não são o caminho alternativo às fábricas que fecham ou aos milhares de funcionários públicos que vão para a rua,
nem ao desemprego eufemisticamente designado como “de longa duração”.
Em “colóquios” e “congressos”, em mensagens televisivas, e nos repetidores habituais, este é o discurso do poder para 2014.
Nada de importante é enunciado, muito menos discutido, ou vai a votos, tudo está pactuado dentro do círculo do poder estabelecido.
E nós somos apenas paisagem.
Na verdade, diria Pangloss, “está demonstrado que as coisas não podiam ser de outra maneira”. “Tudo foi feito para um objectivo”:
“os narizes foram feitos para segurar os óculos, e por isso temos óculos”, “as pedras foram formadas para serem talhadas e para fazer castelos, e por isso Monsenhor tem um belo castelo”, e os “porcos foram feitos para serem comidos”, por consequência, “aqueles que dizem que tudo está bem dizem uma asneira, é preciso dizer que tudo está ainda melhor do que eles imaginam”.
Vou ver se consigo para a semana falar de outra coisa. “Cela est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin.” Pangloss não me ajuda.
--- JPachecoPereira, 13/1/2014, Abrupto
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