Terça-feira, 28 de Outubro de 2014

O que está primeiro, Direitos Humanos ou dívida ?

   Quantas vezes nos é dito que a dívida tem de ser paga até ao último cêntimo, custe o que custar, porque as obrigações internacionais contraídas pelo Estado português têm de ser respeitadas?
   E se as obrigações contraídas pelo Estado junto dos seus credores financeiros colidirem com outras obrigações contraídas pelo mesmo Estado em convénios internacionais, como os respeitantes aos Direitos Humanos? O que deve prevalecer? Dívida ou Direitos Humanos? (ver entrevista a Catarina Albuquerque - Relatora da ONU para o Direito à Água Potável).
     Que existe conflito entre austeridade e serviço da dívida e Direitos Humanos, em particular os que decorrem do Pacto Internacional do Direitos Económicos e Sociais, parece claro. Alguns exemplos:
    1) Direito ao trabalho: aumento desmesurado do desemprego (nomeadamente de longa duração), desproteção do trabalho (bloqueamento da contratação coletiva, degradação do salario mínimo, insegurança no trabalho, liberalização dos despedimentos);
    2) Direito a um nível de vida adequado: redução dos salários, dos apoios sociais e aumento da pobreza, reformas fiscais regressivas;
    3) Direito à segurança social e protecção social: degradação dos sistemas de pensões e da proteção face ao desemprego;
    4) Direito à habitação: despejos, aumento do número de pessoas sem abrigo;
    5) Direito à alimentação: limitações de acesso a subsídios, aumentos do IVA;
    6) Direito à água: privatização, aumentos das tarifas, degradação de infraestruturas, cortes de abastecimento por não pagamento;
    7) Direito à Educação: cortes nos subsídios e bolsas, degradação profissional dos professores, redução da cobertura territorial, dimensão das turmas, degradação do apoio a grupos particulares;
    8) Acesso à saúde: taxas moderadoras transformadas em copagamento, degradação das condições de acesso e qualidade dos cuidados
     O que deve prevalecer, serviço da dívida ou direitos humanos?
     A jurisprudência internacional é clara a este respeito. O “não há dinheiro” dos poderosos e dos economistas do costume, não é em nenhum caso uma razão que justifique a violação ou o retrocesso no domínio dos direitos humanos.
     A lei internacional, decorrente dos tratados, determina nomeadamente que os direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais não são descartáveis em tempos de crise, que são imperativos legais e objectivos políticos de ordem superior, isto é, que os governos têm a obrigação de assegurar o primado dos direitos humanos. Na prática, isto significa que os governos estão obrigados a mobilizar o máximo possível dos recursos para garantir o núcleo essencial de direitos em todas as circunstâncias. Estão obrigados a explorar todas as alternativas para o garantir: realocando recursos, gerando recursos pela política fiscal, monetária, de regulação, recorrendo se necessário ao financiamento deficitário, reestruturando a dívida, recorrendo à assistência internacional a que todos estão obrigados.
     Isto não são princípios abstratos. À luz dos direitos humanos não é admissível, por exemplo, existir uma situação, seja ela qual for, em que uma parte da população fica privada de acesso a água potável por falta de rendimento para a pagar, ao mesmo tempo que uma outra parte se refresca na piscina. Da mesma forma, não é admissível que alguns sejam privados de cuidados básicos de saúde, ao mesmo tempo outros pagam operações de estética. Muito menos admissível é que alguns sejam remunerados por investimentos financeiros em dívida pública ao mesmo tempo que entram colapso infraestruturas públicas, é restringido o acesso à justiça, à saúde e à educação, se torna esparsa a cobertura territorial por serviços públicos, apoios sociais são transformados em sopa dos pobres.
     O “não há dinheiro”, sobretudo num tempo em que o dinheiro brota abundantemente do BCE e dos Orçamentos de Estado para resgatar bancos e comprar o lixo financeiro lá acumulado, não convence, não é uma justificação para o sacrifício do núcleo fundamental dos direitos humanos.
     De acordo com a jurisprudência internacional o "não há dinheiro" também não é justificação para o retrocesso na garantia dos direitos. A regressão carece de uma justificação melhor. De acordo com a jurisprudência, só pode ocorrer depois de cuidadosa consideração de todas as alternativas. Uma medida regressiva para ser considerada justificada, deve ser temporária, necessária e proporcional (deve ser demonstrado que qualquer outra política, ou omissão, seria ainda mais prejudicial em termos de direitos), não discriminatória (deve ter em consideração alternativas fiscais que operem transferências que assegurem que indivíduos e grupos marginalizados não são afectados de forma desproporcionada), deve preservar o núcleo mínimo de direitos e de protecção social.
     Os Direitos Humanos são palavras escritas numa folha de papel? Não é tanto assim. A experiência portuguesa mostra que os tribunais, enquanto funcionarem com independência, podem evitar muito sofrimento desnecessário. Em geral, o Tribunal Constitucional português, tem cumprido esse papel. Mais força ganharão os Direitos Humanos contra o poder do “não há dinheiro” se as pessoas souberem que os governos estão obrigados a garanti-los, se necessário à custa das obrigações que assumiram perante os seus credores.


Publicado por Xa2 às 19:16 | link do post | comentar

2 comentários:
De U.E., Portugueses e desgovernos a 30 de Outubro de 2014 às 15:51

O cão que não ladrou
(-por F.Louçã, 27/10/2014)

Michael Ignatieff, ex-deputado canadiano e actualmente professor em Harvard, convidado para uma conferência no CCB, resume assim como alguns vêem no estrangeiro a nossa tragédia recente: “apesar da crise, Portugal foi o cão que não ladrou na Europa”. E não mordeu, entenda-se.

A imagem é dura. Lembra-nos que o governo foi o empenhado facilitador do empobrecimento, que os protestos contra a troika foram grandes mas tão raros, que as alternativas foram escassas e talvez pouco convincentes. O “cão que não ladrou” é por isso uma metáfora escolhida para ser humilhante. Mas tem um grão de verdade. O país não se virou contra o governo colaboracionista, a esquerda dividiu-se ainda mais e manteve-se em grande medida desinteressada ou temerosa das soluções, os sindicatos foram perdendo força ao mesmo passo em que a precarização, o desemprego e a emigração devastavam num ápice a vida de tantas pessoas. A derrota de Portugal perante a troika é o facto dominante da nossa vida colectiva no que vai do século XXI, com a aceitação das regras europeias que são a trela curta que nos é imposta.

Diz Ignatieff que o cão não ladrou? Dizia Nietzsche, muito antes dele, que a dívida transforma a vítima num “animal doméstico”. Não se tinha lembrado que o cão podia ladrar e até podia morder, mas nem isso parece ter acontecido neste cantinho à beira-mar plantado. Uma estratégia de libertação da trela é por isso o mínimo que nos é exigido.

Em resposta antecipada, Boaventura de Sousa Santos, no PÚBLICO (17 de maio), propunha a estratégia da “jangada de pedra”, um movimento de distanciação da União Europeia, como a única forma de negociar e “romper com a trela” do protectorado:

“Haverá então alternativas democráticas, quer a nível nacional, quer a nível europeu, a este regime autoritário? Claro que sim. Para isso, é necessário que a jangada de pedra, tão premonitória, se afaste o suficiente para romper com a trela ou para forçar que ela seja refeita de modo a dar mais margem de liberdade ao movimento da jangada.”

Precisamos dessa liberdade e, para isso, de saber por onde começar a cortar as amarras e as trelas.

------- FLouçã:
Concordo que é preciso começar pelo essencial: a dívida e a prisão do euro. E duvido que isso se faça só com negociações, ou que nas negociações as autoridade europeias procedam de boa fé. Quanto a outras mudanças, acho que no plano fiscal ou da organização do Estado e dos seus serviços dependem inteiramente do que se consiga na margem de manobra financeira.

----Paulo Silva
Nos últimos 15 anos, enquanto Portugal se endividava e escondia as contas debaixo dos tapetes, ninguém ladrou.
Quando há três anos veio para cá a troika com dinheiro para pagar salários toda a gente sabia que não seria de borla. Os que foram contra a vinda da troika, nunca disseram como se iriam pagar salários aos funcionários públicos. Na prática ninguém ladrou, apenas ronraram.
Calados na hora de receber, a rosnar na hora de pagar.
Após três anos de troika pouca coisa mudou, excepto aqueles que ficaram sem emprego e sem salário. Esses são os que menos ladram e não têm quem ladre por eles. E esses deviam ladrar muito, não para lá para fora, deviam era ladrar cá para dentro.

----Francisco Louçã :
A troika não pagou um cêntimo de salários, nem foi para isso que veio. Pagou, e muito, à banca internacional, que se livrou da dívida portuguesa.

-----Epicuro: ...
Portugal nem capacidade demonstrou para banir um boçal que chegou ao governo e disse que era altura dos portugueses abandonarem o país. ... Portugal nem capacidade demonstrou para colocar o governante e o seu governo a sair do seu “domínio de conforto”.

Com que gente é que faz a alternativa? Com que conhecimentos? Para que objectivos? Onde estão os sinais de gente com capacidade de alternativa? Nos desertores que emigram? Onde é que vê gente com postura para ficar e colocar os governantes a emigrar?

Os abusos, das contas de milhares de milhões para a plebe pagar, aparecem cada vez mais e com as desculpas cada vez mais absurdas. E que faz a plebe? Emigra para ajudar a pagar, actua contra os seus para manter quem abusa deles. É o tal lixo de si mesmo.
Portugal é um cão que puxa um trenó repleto de parasitas a ...


De Desobedecer à dívida ilegítima a 30 de Outubro de 2014 às 16:58
Éric Toussaint: “O apelo de Alexis Tsipras para uma Conferência Internacional sobre a dívida é legítimo”

É preciso desobedecer aos credores que exigem o pagamento da dívida ilegítima e impõem políticas que violam os direitos humanos fundamentais, que incluem os direitos económicos e sociais da população. Entrevista de Éric Toussaint realizada por Tassos Tsakiroglou.


27 de Outubro, 2014

Manuel Valls e Matteo Renzi pedem mais tempo para reduzirem o défice, garantindo, em troca, fazer as reformas necessárias para que os seus países se tornem mais competitivos. Estamos perante um verdadeiro desafio para um consenso sobre a austeridade na Europa? Isto poderá conduzir a resultados positivos?

Eu acho que o pedido que eles fazem à Comissão Europeia será rejeitado, porque a Comissão quer manter as medidas brutais de austeridade na Europa, em particular, na periferia (Grécia, Espanha, Irlanda, Chipre, Portugal e países da Europa central e oriental), mas também em países como a França, a Itália, a Bélgica, a Holanda, a Áustria e a Alemanha. Se os governos francês e italiano fossem capazes de convencer a Comissão Europeia a abandonar as políticas de austeridade, seria positivo. Mas isso é impossível, especialmente, porque, ao mesmo tempo, F. Hollande e M. Renzi querem precarizar ainda um pouco mais os trabalhadores no mercado de trabalho. Na Itália, por exemplo, Renzi lidera um ataque contra as conquistas sociais que Berlusconi não tinha conseguido destruir. Além disso, sabemos que aquilo que o governo Valls faz em França visa favorecer as grandes empresas privadas, nomeadamente, os grandes bancos e seguradoras privadas.

Alexis Tsipras apela para uma conferência internacional sobre a anulação da dívida dos países do Sul da Europa atingidos pela crise, semelhante à que ocorreu na Alemanha, em 1953, e através da qual 22 países, incluindo a Grécia, anularam uma grande parte da dívida alemã. Será que esta perspetiva é realista hoje?

É uma proposta legítima. É claro que a Grécia não gerou nenhum conflito na Europa, como aquele que foi provocado pela Alemanha nazi. Os cidadãos da Grécia possuem um argumento forte para dizerem que uma grande parte da dívida grega é ilegal ou ilegítima e deve ser suprimida, como a dívida alemã foi anulada em 1953i. Todavia, eu não penso que o SYRIZA e outras forças políticas na Europa vão conseguir convencer as instituições e os governos dos países mais poderosos da UE a sentarem-se a uma mesa, replicando o que foi feito com a dívida alemã, em 1953. Trata-se, portanto, de um pedido legítimo e eu apoiei nesse sentido a candidatura de Tsipras à presidência da Comissão Europeiaii, mas não vejo que se consiga convencer os governos das principais economias europeias e as instituições da UE a fazê-lo. O meu conselho é o seguinte: a última década mostrou-nos que podemos chegar a soluções equitativas através da aplicação de atos soberanos unilaterais. É preciso desobedecer aos credores que exigem o pagamento da dívida ilegítima e impõem políticas que violam os direitos humanos fundamentais, que incluem os direitos económicos e sociais da população. Eu acho que a Grécia tem argumentos sólidos para agir e formar um governo apoiado pelos cidadãos, que exploraria possibilidades nesse sentido. Esse governo popular e de esquerda poderia organizar um comité de auditoria à dívida com ampla participação dos cidadãos, o que permitiria determinar qual a parte da dívida que é ilegal e odiosa, suspender unilateralmente os pagamentos e depois repudiar a dívida identificada como ilegítima, odiosa e/ou ilegal.

Na Grécia, o SYRIZA está à frente de todas as sondagens e vários dos seus dirigentes afirmam que a negociação da dívida será feita no âmbito da zona euro e que não será resultado de uma ação unilateral. O que diz sobre o assunto?

Sim, eu conheço a posição oficial do SYRIZA. Pessoalmente, eu tento mostrar que se pode aplicar um outro tipo de política, porque é óbvio que a maioria dos governos da zona euro e do BCE não aceitarão reduzir de forma significativa a dívida da Grécia. Assim, apesar da vontade manifestada pelo SYRIZA para negociar, eu acho que é impossível convencer o conjunto dos atores. Para isso, é preciso ser mais radical, porque não há outra possibili ...


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