'Politicar' a União Europeia em Portugal e em cada nação.
Pela primeira vez a Europa tornou-se uma questão de política interna
(-JPP, 3/3/2015, Abrupto)

Pela primeira vez, desde sempre,
uma matéria europeia tornou-se uma fractura de política nacional: a questão grega. Apesar dos esforços inglórios de muitos europeístas, e de alguns eurocépticos, esta entrada de uma questão europeia na agenda política nacional não se deu com nenhuma das matérias canónicas da “construção europeia”. Não foi um
tratado, como o de Lisboa, não foi um projecto
constitucional, não foi qualquer
reforma institucional, nem o equilíbrio ou desequilíbrio do
poder da Comissão, do Conselho, ou do Parlamento. Não foram
fundos, nem planos, nem quadros comunitários, que esses
mobilizam apenas aqueles que estão na fila para os receber e são vistos com indiferença pela maioria das populações que acham que não estão do “lado recebedor”. São matéria popular numa elite especializada em os usar, das empresas às autarquias, ou
em grupos de interesse que conhecem todos os segredos da burocracia europeia
para ir buscar o seu quinhão. Para o cidadão comum, é pouco mais do que umas estrelas azuis nuns cartazes junto a obras e uma
enorme suspeita de corrupção pelo caminho. Não foi, o que é ainda mais revelador, nenhuma das agendas que surgem nas eleições europeias, que só mobilizam votantes, e mesmo assim pouco, pelo uso do voto europeu nas questões políticas nacionais.
Não foi nada disso, foi uma discussão que envolve questões poderosas mas incómodas na União Europeia: democracia, vontade popular, liberdade dos povos, igualdade das nações, soberania, pensamento “único”, hierarquias de poder, todas as questões malditas que a actual geração de governantes europeus anda a querer evitar a todo o custo e agora não pode fugir delas. Foi isso que tornou a questão grega uma questão nacional em muitos países, do “nein” alemão do Bild às sucessivas sessões do Parlamento português, com tomadas de posição pró e contra muito mais apaixonadas do que é costume numa questão internacional, e muito menos na pasmaceira que costuma caracterizar a política europeia.
Passado um mês da vitória do Syriza, temos um mau acordo para os gregos, que o aceitaram com reserva mental e dificilmente o cumprirão, e um mau acordo para a União Europeia, que o fez também com reserva mental para “esmagar” os gregos. Pelo caminho, revelou-se um “estado” da Europa que assusta qualquer um, com uma elite governamental sob a batuta de um alemão vingativo, Schäuble (muito mais do que Merkel), que se dedicou a punir a Grécia pelo atrevimento. A Grécia, o país que mais do que qualquer outro tem razões de queixa da Europa, tendo sido sujeito a uma imposição de violenta austeridade sem qualquer resultado palpável, sob um governo espelho do poder europeu, um partido do PPE aliado com um do PSE. Não foi o Syriza que colocou a Grécia no estado em que está, foram a troika e o Governo grego amigo de Merkel, Rajoy e Passos Coelho.
O que se assistiu foi a uma pura exibição de poder imperial, até com uma dimensão individualizada em Schäuble, rodeado por uns gnomos serviçais e no meio de uma série de governantes que de há muito se esqueceram que eram democratas-cristãos, sociais-democratas, socialistas, e que agora são “europeístas”, uma coisa indiferenciada e iluminista, feita de uma engenharia utópica serôdia e do mais clássico impulso burocrático. O que mais os incomodou naquelas salas não foi a petulância de Varoufakis, nem os discursos inflamados de Tsipras, mas o facto de os governantes gregos terem lá chegado com um esmagador apoio popular, que as sondagens revelam ir muito para além dos resultados nas urnas, e de eles estarem acossados em cada país, a começar pelos mais serviçais, portugueses e espanhóis.
Para esta elite é inaceitável que ainda haja governantes que olham para baixo, para a vontade de quem os elegeu, mal ou bem, enquanto eles o que têm feito é evitar cuidadosamente levar a votos aquilo que estão a fazer, muitas vezes a milhas daquilo que prometeram nas suas campanhas eleitorais. Por isso, os gregos tinham de ser esmagados e humilhados, para regressarem à pátria como demonstração viva de que não há outro caminho que não seja a submissão, a “realidade”. A frase jocosa de Schäuble, dizendo que “os gregos certamente vão ter dificuldades em explicar este acordo aos seus eleitores”, é o mais revelador do que se passou. Não foi o dinheiro, nem a dívida, nem as “regras”, foi obrigar o Syriza a comer o pó do chão e quebrar o elo entre eles e os seus eleitores, essa coisa mais do que tudo perturbadora para estes homens.
E não me venham dizer que o que está em jogo é a vontade dos eleitores alemães contra a dos gregos, porque a última coisa que passa pela cabeça de Schäuble é pensar que faz o que faz porque é o que os seus eleitores desejam. Ele faz o que faz, porque defende o poder alemão na União Europeia e assim os interesses últimos da Alemanha, económicos, sociais e políticos. Ele pode ser nacionalista, os gregos não. Toda a gente percebe que o que se passou não pode ser esquecido ou “arrumado” e andar-se para a frente. Daqui a quatro meses vai tudo voltar outra vez ao de cima e é até bastante provável que a Grécia deixe o euro. Claro que nesse mesmo dia deixará de pagar a dívida e as centenas de milhares de milhões de euros emprestados vão ao ar.
Mas se é possível admitir um processo de saída do euro sem grandes convulsões institucionais, o que é que acontece se a Grécia quiser continuar a fazer parte da União Europeia, onde tem um voto juntamente com os outros países que, em matérias que implicam a unanimidade, é um veto? Política externa, por exemplo. Será que a Grécia pode ser “expulsa”? Não pode, a não ser que se mudem os tratados, para o que é preciso o voto grego…
Claro que há entorses possíveis de fazer, por gente muito habituada a fazer essas entorses, mas será líquido que os dezoito continuem dezoito contra um? Já nem sequer falo do fim da União Europeia como foi fundada, que de há muito já acabou. Falo desta coisa que se percebe muito bem: o poder imperial não pode manter-se sem a força e a força não são canhões ou soldados (a não ser no Leste da Europa, mas depois falamos disso…), mas o dinheiro, a dívida, os mercados – ou seja, como já o disse, a forma moderna de aliança entre os grandes interesses financeiros e a (elite) política.
Os portugueses, que as sondagens revelam estar maioritariamente com os gregos, mesmo depois dos argumentos mesquinhos de que isso lhes iria custar dinheiro, percebem isto com uma enorme clareza. O argumento de que não há manifestações a favor da Grécia com mais de 50 pessoas é bom para alimentar o fogo da Internet “liberal” e governamental que espuma com o Syriza, grita vingança e humilhação, e bate palmas a Schäuble. Mas deviam olhar com mais atenção para as razões pelas quais o Governo português, depois de ter sido exibido e denunciado no seu papel vergonhoso de acólito alemão, percebeu que tinha ido longe de mais em público e disfarça hoje os seus passos.
Porque será? A resposta é simples: a exibição de um poder imperial unanimista dos dezoito contra um, com motivações que se percebe não terem qualquer elevação, dignidade, ou sequer utilidade, é, como todas as exibições de força, muito preocupante. Assusta, e bem, quem ainda tiver uma réstia dessa coisa maldita na Europa, o sentimento nacional antigamente chamado "patriotismo". E se um dia for Portugal a estar do lado perdedor? E se um dia os eleitores portugueses votarem num governo “errado”, como pode acontecer em democracia? E se um dia todas as políticas nacionais tiverem de ir a visto em Bruxelas (já vão em parte)? E se um dia a União se começar a imiscuir nas nossas fronteiras atlânticas, como já se imiscui no que os nossos pescadores podem ou não pescar? E se um dia algum burocrata europeu entender que Portugal deve ser reduzido a um país agrícola e turístico e fazer uma fábrica for proibido, se competir com a quota francesa ou espanhola? E se um dia os nossos europeístas (como já o dizem) considerarem que as decisões do Tribunal Constitucional são “ilegais” face ao direito comunitário? E se um dia houver um qualquer sobressalto nacional que nos coloque em confronto com um qualquer Schäuble e os seus dezassete anões?
Nessa altura lembrar-nos-emos certamente da Grécia.
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A ENTREVISTA DA PROCURADORA E A SEGURANÇA SOCIAL DE PASSOS COELHO
As controvérsias com Passos Coelho decorrem sempre de subprodutos de uma questão maior que fica muitas vezes oculta: a natureza dos "empregos" que tinha, as formas de remuneração, as empresas em que trabalhava e a sua especial relação com o poder político, a natureza dos empregadores e o modo como funcionava este "sistema", como já acontecera na Tecnoforma. É possível que a maioria das coisas que se passavam (e passam) nesse mundo de negócios encostados ao poder político nacional ou autárquico, sempre em modo de "bloco central", sejam legais numa base de interpretação estrita da lei, ou pelo menos da lei à época.
Mas é aqui e daqui que surgem as "redes" de que falava a procuradora-geral da República numa entrevista que só pode espantar quem queira ser "espantado". Não estou a implicar o primeiro-ministro em nada, mas a implicar o "meio" em que esteve envolvido, como aliás muitos políticos em ascensão numa determinada época, porque "o meio", esse sim representa um problema. Um problema que tem sempre um aspecto cívico (o tal que na interpretação de Pina Moura e de Miguel Relvas não era atingido pela "ética republicana"), mesmo quando não tenha um aspecto criminal (que o "meio" favorece).
As "redes"
Essas redes (e não uma só rede) ligam-se ao poder político por via dos aparelhos partidários e pela sua relação íntima com o poder autárquico e nacional. Implicam os mecanismos de financiamento partidário que muitas vezes são individualizados em pessoas (jovens políticos com "futuro"), noutras nas secções, distritais ou federações, e acompanham muitas vezes essas mesmas pessoas na sua ascensão política, ou funcionam numa simbiose com as estruturas político-autárquicas. Nem tudo o que fazem, insisto, é estritamente ilegal, mas o terreno é o das cunhas, favores, "sindicância" de interesses, inside trading, mas também, no limite, tráfico de influências e pura e simples corrupção. A rede das sucatas ligada ao PS é um exemplo de um "negócio" deste tipo intermédio, como o BPN, com as suas extensões como no "caso Duarte Lima", é já mais de cima, envolvendo a primeira linha da política, neste caso do PSD. Caso se provem as acusações contra Sócrates, o problema para o PS é que não vai conseguir destacar os seus governos das suas putativas actividades criminosas.
Onde há dinheiro aparecem "empresas" para o ir buscar
Estas redes não são todas da mesma natureza nem actuam da mesma maneira, nem têm a mesma dimensão, mas têm natureza semelhante no modo como se faz a interface entre pessoas, partidos e poder político. Algumas são muito de "baixo", estão muito localizadas nos negócios autárquicos, outras já fazem o upgrade para as regiões, acompanhando divisões de planeamento administrativo ou de divisão dos fundos comunitários. Onde há dinheiro, caminham para lá. As áreas em que actuam são as que mais dependem de decisões políticas, existência de fundos, ou de políticas sectoriais numa determinada época. As fraudes com o Fundo Social Europeu são um exemplo datado, mas depois o sector do ambiente, resíduos, formação, energias renováveis, contratos de serviços, agências de comunicação e marketing, além dos clássicos negócios imobiliários.
Onde há acesso a subsídios, caminham para lá.
Uma miríade de pequenas empresas associadas aos negócios com os bombeiros, a segurança, serviços informáticos, consultoria, defesa, saúde, muitas fundadas por antigos militantes partidários, das "jotas" em particular, do PS e do PSD, para responderem a oportunidades de negócio que conhecem melhor do que ninguém porque têm informação privilegiada e acesso directo aos decisores. Foi assim que nos grandes partidos PS e PSD e agora também no CDS se passou da militância política para o mundo dos negócios, sempre com base nas agendas telefónicas dos telemóveis e na permuta de favores. As empresas mais sábias recrutam sempre quem telefona para um membro do Governo, deste ou dos anteriores, e é sempre atendido. Como se diz agora é um asset precioso, permite negócios e "traz" negócios.
Em cima as coisas são mais alcatifadas
Nos casos mais em cima, envolvendo o poder central e os grandes negócios, como as privatizações, aí há aspectos diferentes. A intermediação
A entrevista da ...
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Em cima as coisas são mais alcatifadas
Nos casos mais em cima, envolvendo o poder central e os grandes negócios, como as privatizações, aí há aspectos diferentes. A intermediação passa pelos serviços dos grandes escritórios de advogados, nacionais e estrangeiros, pelas empresas de consultoria, pela banca, pelos gabinetes e pelos assessores, tudo muito alcatifado e prudente, em almoços de negócios, férias em comum, sem rastro de papel, dentro do "círculo de confiança", com gente muito competente e de "sucesso", e acaba nos offshores das Caraíbas. Como é que se pode esperar que haja indignação com a pequena corrupção (e aí até há mais) quando ninguém diz nada sobre o Lux Leaks e o Swiss Leaks, como se fosse normal, desviar por sistema o dinheiro dos impostos nacionais?
Enquanto não se combater o "meio" de onde surgem as "redes" tudo vai continuar na mesma
As "redes" de que falava a procuradora podem ser combatidas no plano político, embora seja cada vez mais difícil fazê-lo pelo fechamento dos grandes partidos, pelas suas cada vez mais poderosas partidocracias. À medida que perdem votos e legitimidade política, acantonam-se nos seus lugares e promovem apenas os semelhantes com provas dadas nos mesmos hábitos e procedimentos. Geram assim a "confiança" que é necessária para subirem no aparelho partidário e isso explica, entre outras coisas, porque não há nos partidos uma intransigência face à corrupção. Podem acumular leis sobre leis, para responder à pressão pública, mas os mecanismos permanecem intactos e são suficientemente maleáveis para se adaptarem a diferentes circunstâncias.
Muita gente que não é especialmente gananciosa nem beneficiou muito do "pote", permite que à sua volta os amigos e próximos na política o façam, diante dos seus olhos e com a sua complacência. O "meio" cola-se e o "meio" ajusta as suas contas. Quanto às trapalhadas com negócios, impostos, remunerações, contribuições para a segurança social, são apenas um aspecto do funcionamento de um "meio" destinado a ganhar dinheiro por via da posição partidária, sem grandes cuidados com a forma. Hoje seria diferente, haveria um imenso cuidado com a forma, e nunca aconteceriam estes "esquecimentos".
Na altura, era mais uma espécie de faroeste à nossa pequena dimensão.
------- JPP, 6/3/2015, http://abrupto.blogspot.pt/2015/03/a-entrevista-da-procuradora-e-seguranca.html
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