Quarta-feira, 9 de Abril de 2014

 O meu país não é deste Presidente, nem deste Governo

Alexandra Lucas Coelho recebeu nesta segunda-feira o prémio APE pelo romance E a Noite Roda. Este é o texto do discurso que fez, no qual critica o actual poder político. 

...  ... O Portugal que durante 40 anos Salazar achou que era seu, pobre mas honesto-limpo-obediente, como agora o Governo no poder quer Portugal, porque acha que Portugal é seu.

   Estou a voltar a Portugal 40 anos depois do 25 de Abril, do fim da guerra infame, do ridículo império. Já é mau um governo achar que o país é seu, quanto mais que os países dos outros são seus. Todos os impérios são ridículos na medida em que a ilusão de dominar outro é sempre ridícula, antes de se tornar progressivamente criminosa.

    Entre as razões por que quis morar no Brasil houve isso: querer experimentar a herança do colonialismo português depois de ter passado tantos anos a cobrir as heranças do colonialismo dos outros, otomanos, ingleses, franceses, espanhóis ou russos.

    E volto para morar no Alentejo, com a alegria de daqui a nada serem os 40 anos da mais bela revolução do meu século XX, e de o Alentejo ter sido uma espécie de terra em transe dessa revolução, impossível como todas.

    Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.

    E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.

    Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos seres para a morte, que somos, que somos.

    Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo meio tudo é ganho, porque só a perda é certa.

    O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo, com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o Governo nos mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.

    Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o Governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este Governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página”.

    Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.

    Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do seu Governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo porque não temos alternativa.

    Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito, inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil do que qualquer discurso oco dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento.    Estão lá, revirando a história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da escravatura.

    Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa, e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou 7000 livros, uma tonelada, para um 11.º andar, que era o que dava para pagar de aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual Presidente da República.

    E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de quem não cruzou os braços quando o Governo no poder estava a acabar com o cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dívidas à Segurança Social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E, ainda assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.

    Não devo nada ao Governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta, que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa, que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.

    Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.

    Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva 100 anos, tudo corre para acabar, sabemos. Mas enquanto isso estamos vivos, não somos sobreviventes.

    Este romance também é sobre Gaza. Quando me falam no terrorismo palestiniano confundindo tudo, Al-Qaeda e Resistência pela nossa casa, pela terra dos nossos antepassados, pelo direito a estarmos vivos, eu pergunto o que faria se tivesse filhos e vivesse em 40km por seis a dez de largura, e antes de mim os meus antecedentes, e depois mim os meus filhos, sem fim à vista. Partilhei com os meus amigos em Gaza bombardeamentos, faltas de água, de luz, de provisões, os pesadelos das meninas à noite. Depois de eu partir a vida deles continuou. E continua enquanto aqui estamos. Mais um dia roubado à morte.



Publicado por Xa2 às 07:55 | link do post | comentar

2 comentários:
De Leituras : Ladrões de B., 9/4/2014 a 9 de Abril de 2014 às 11:38
«Isabel Jonet, Paulo Portas e o banqueiro Ulrich, entre outros, são exemplos de uma elite com um discurso autoritário sobre os portugueses em situação limite. Jonet usa a visibilidade de uma instituição que é de todos para tiradas abusivas sobre a privação material (...). As suas bocas resultam de lugares comuns que, associados a uma visão ideológica redentora, disfarçam a ignorância de validação científica. (...) Portas também. Vergastou nos beneficiários do RSI que terão 100 mil euros no banco, um insulto aos que recebem de RSI pouco mais de €87,21 por mês (...) Ninguém crê nisso, nem Portas, mas a sua narrativa serve o desbaste social, a inveja pública e a legitimação do choque e pavor. Ulrich, o banqueiro-activista, quer que os portugueses aguentem: os 2 milhões de pobres, os 20% em risco de cair nela, os incontáveis milhares forçados a partir e os milhões de desempregados, empregados pobres, insolventes. Logo ele, que não aguentou e estendeu a mão ao Estado. Estes são os representantes de uma elite cínica que, ela sim, vive num país irreal. São os intocáveis. São os de cima. Mas fortaleceram uma crescente autoridade simbólica no país, fazendo com que a maioria dos de baixo apoie as medidas que os prejudicará no seu todo.» --Tiago B.Ribeiro, Os pobres contra os pobres

«Os tweets de um secretário de Estado chamado Bruno Maçães (...) vão fundo ao pensamento débil de quem nos governa e mostram a perigosidade social de meia dúzia de ideias extremistas na mão de quem tem poder e que, sem mudarem nada, estragam o país por muitos anos. (...) Dificilmente se pode encontrar melhor exemplo da gigantesca arrogância e presunção de um conjunto de conselheiros de Passos Coelho, em que tudo transpira a uma gigantesca auto-suficiência e assertividade, associada a uma profunda ignorância do que é Portugal, a sua história e as suas pessoas, o povo, nós todos, o único "nós" que tem sentido.(...) A metade de Passos Coelho que não foi feita por Relvas foi feita por homens como Maçães, combinando na mesma criação a esperteza aparelhística e o mundo das negociatas e das cunhas, com as altas esferas académicas sempre dispostas a fazerem de dr. Strangelove. Ou seja, o dr. sem ser dr., junto com o Professor Doutor. Infelizmente, a história tem muitos exemplos destes e dão sempre torto. Mas eles nunca querem saber de história.» --J.Pacheco Pereira, Os piu-piu de Maçães

«O Portugal que durante 40 anos Salazar achou que era seu, pobre mas honesto-limpo-obediente, como agora o Governo no poder quer Portugal, porque acha que Portugal é seu. (...) Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido. E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”. Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo.» -- Alexandra L.Coelho, O meu país não é deste Presidente, nem deste Governo

«O meu medo é que depois digam que nós portugueses somos como o escaravelho (...), quase uma versão zoológica da Caverna de Platão, seres de tal forma habituados à funda depressão e à falta de horizontes que tenham perdido as asas e os olhos. Às asas, para humanos, chama-se imaginação. À metáfora dos olhos chama-se aqui “vontade de ver”. (...) Não podemos ter perdido a capacidade de imaginar um outro país que não no fundo da gruta. Não podemos ter perdido a vontade de ver, com olhos de ver, o mundo à nossa volta. Não podemos ser um país dividido entre os q não têm imaginação para mais do q isto, e os q se recusam a ver a realidade. (...) Talvez algures na nossa memória genética tenhamos ficado condicionados, habituados a viver sem futuro nem luz, sem capacidade de reação. Mas ...fazer qq coisa para nos salvarmos-compete-nos. -R.Tavare


De O q. se passou. Viva a CORAGEM da escrit a 11 de Abril de 2014 às 15:10
Alexandra L. Coelho:
Não há gravações do que se passou durante a entrega do Grande Prémio de Romance e Novela da APE, na sala 2 da Fundação Gulbenkian, a 7 de Abril. Havia jornalistas presentes mas não em trabalho, a tomar notas. Por isso não há forma de citar “ipsis verbis” o que disse o Secretário de Estado da Cultura (SEC), Jorge Barreto Xavier.
Mas há algumas dezenas de testemunhas que podem acrescentar ou corrigir o que vou tentar resumir agora aqui, por tudo se ter passado numa cerimónia pública.

Sendo este prémio tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, decidiu o actual presidente, Cavaco Silva, à semelhança de anos anteriores, fazer-se representar. Neste caso, pelo seu Consultor para Assuntos Culturais, Diogo Pires Aurélio. Isto era o que eu sabia quando escrevi o discurso para a ocasião.

Já no átrio da Gulbenkian, perto da hora marcada, 18h, a APE comunicou-me que a cerimónia estava um pouco atrasada porque esperavam o Secretário de Estado da Cultura.
Quando Barreto Xavier (SEC) chegou e entrámos todos para a sala, o protocolo sentou-o ao centro da mesa, junto a Diogo Pires Aurélio. Nas pontas, Gulbenkian (representada por Rui Vieira Nery), APE (José Manuel Mendes, José Correia Tavares), júri (representado por Isabel Cristina Rodrigues) e eu.
Vieira Nery abriu, sucintamente; seguiram-se discursos da APE; Isabel Cristina Rodrigues leu o texto em que o júri justifica a atribuição do prémio a "E a Noite Roda". Diogo Pires Aurélio e eu levantámo-nos para que ele me entregasse o sobrescrito do prémio, um minuto de formalidade, sem palavras, para a fotografia. Chegou a minha vez de discursar, li as páginas que trazia.

No fim, houve uma ovação de pé. Digo isto para dar conta da atmosfera que os representantes do poder político tinham diante de si.
A APE convidou então o SEC a intervir. Ele escolheu falar sentado, sem se deslocar ao púlpito. Uma das coisas que disse,
na parte, digamos, cultural da intervenção, foi que eu bem podia declarar que não fazia ficção porque claro que fazia ficção porque é isso que um escritor faz, ficção. Foi o primeiro arroubo dirigista, que nos devia ter preparado para o que aí vinha.
Na parte, digamos, política, destaco quatro coisas:
o SEC disse que eu devia estar grata por estarmos em democracia e eu poder dizer o que dissera;
que durante anos os portugueses se tinham endividado acima das suas possibilidades;
que, ao contrário do que eu dissera, ninguém saíra de Portugal por incentivo deste governo;
e, sobretudo, que eu tinha dito que não devia nada a este governo mas que isso não era verdade porque este governo também subsidiava o prémio.
Referia-se ele, assim, a um prémio com décadas de existência; atribuído a alguns dos mais extraordinários escritores de língua portuguesa; cujo montante em dinheiro resulta de vários patrocínios, sendo que os públicos resultam do dinheiro dos contribuintes; e que tem atravessado os mais variados governos, sem que nunca, que me recorde, algum governante o tenha tentado instrumentalizar.
Foi a mais escancarada confusão de Estado com Governo que já presenciei, para além do tom chantagista ao nível de jardim de infância das ditaduras.
E, apesar dos apupos, de quem lhe gritava da plateia "Mentira!" e "O Estado somos nós!", o SEC insistia.
Como cabe ao Presidente da República, ou seu representante, encerrar a cerimónia, a APE instou Diogo Pires Aurélio a falar. O representante do Presidente da República declinou e encerrou a sessão. No fim, cumprimentou cordatamente todos os presentes na mesa e retirou-se.

Já Barreto Xavier, aproximou-se de mim na confusão da retirada. Julguei que se vinha despedir, depois de dizer o que tinha a dizer. Nada disso. Queria dizer-me, visivelmente irritado, que o que eu fizera tinha sido de um grande "primarismo". Respondi-lhe que então devia ter dito isso mesmo ao microfone, que eu já dissera o que tinha a dizer e não lhe ia dizer mais nada. Fui andando, para contornar a mesa e acabar com a cena, mas o SEC insistia: que eu tinha sido “primária”.

O "Público" pediu-me o discurso para publicar online na tarde do dia 8. Quatro horas depois, 89 mil pessoas tinham lido o texto. Ontem, o post no FB do "Público" tinha sido visto por 170 mil. Obrigada a todos pela partilha.


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