O jornal
Il Manifesto publicou ontem a
entrevista que dei ao Goffredo Adinolfi, correspondente do diário italiano em Lisboa,
sobre a situação política e económica em Portugal. Fica aqui a versão traduzida.
-Q: Finalmente, com um atraso de alguns meses, o Orçamento do Estado para 2016 (OE2016) está na recta final: que avaliação é possível fazer ao governo das esquerdas liderado por António Costa? R: O esforço para distribuir melhor os rendimentos é o aspecto mais positivo. Esta foi uma preocupação central dos acordos feitos entre os partidos de esquerda e isso foi conseguido principalmente através de duas vias: a política orçamental e o aumento do salário mínimo. O aspecto menos positivo do OE2016 tem a ver com o facto de continuar a trajectória de
redução severa do défice orçamental, que vai de 3,1% para 2,2% do PIB, num momento em que o
desemprego ainda é muito elevado (muito mais do que os números oficiais mostram).
-Q: Valeu a pena? R: Tendo em conta a alternativa valeu seguramente a pena, mas ainda é insuficiente considerando as condições em que o país se encontra.
-Q: A direita e os meios de comunicação estão a tentar fazer passar a ideia de que o aumento de impostos previsto no OE2016 prejudica a classe média e as empresas. R: A direita e grande parte dos meios de comunicação tiveram uma reacção que é quase risível. Começaram por criticar a proposta de OE2016 porque consideravam os valores pouco fiáveis. Depois passaram a dizer que o OE não estava em conformidade com as regras europeias. Em seguida tentaram sustentar que os aspectos de redistribuição de rendimentos estavam ausentes. Finalmente, argumentaram que a estratégia do Orçamento – aumentar a procura interna – não iria funcionar na prática. Esta atitude dá a entender que a direita olha com grande nervosismo para a
busca de alternativas.
-Q: O OE2016 respeita os critérios impostos pela União Europeia. Isso significa que a austeridade também pode ter uma interpretação de esquerda? R: Isso é parcialmente verdadeiro, mas há limites. Este Orçamento mostra que é realmente
possível distribuir melhor os esforços de consolidação orçamental, mas também mostra que dentro das regras europeias não há nenhuma possibilidade de ter uma política que promova decisivamente o emprego. De facto, a “austeridade de esquerda” dá um contributo modesto para a resolução da crise social em Portugal.
-Q: Ao contrário do que se poderia pensar, a Comissão Europeia deu o seu aval ao Orçamento do governo de Costa, depois de exigir uma série de medidas compensatórias. Isto é um sinal de que algo está a mudar também em Bruxelas? R: Não, não creio que tenham ocorrido grandes mudanças de atitude. A Comissão Europeia teve em todo este processo uma postura extremamente agressiva com o Governo Português, e as coisas só não foram piores porque a posição negocial da Comissão não é a melhor neste momento. Seria um erro pensar que a Comissão teve uma atitude transigente. Em
Bruxelas há uma grande preocupação em relação tanto ao resultado do referendo britânico como ao problema dos refugiados. Além disso, a Comissão Europeia teve de ter em conta os
erros cometidos durante o programa de ajustamento. Um dos mais importantes que surgiram no contexto da negociação deste Orçamento foi o facto a Comissão ter tratado como medidas permanentes o que, na realidade, eram apenas medidas temporárias do anterior governo (tais como o corte dos salários da função pública). Isto criou dificuldades acrescidas ao actual governo português.
-Q: Algumas críticas também vieram da esquerda, especificamente foi dito que as medidas favorecem principalmente a classe média... R: Creio que a grande maioria das pessoas e organizações de esquerda vêem este
Orçamento como o menor dos males possíveis. Em parte, é verdade que o tipo de medidas tomadas beneficia principalmente a classe média, mas isso também acontece porque
foi a classe média o grupo mais penalizado em termos fiscais durante o programa de ajustamento. Mas é preciso ter em conta que há também importantes medidas que visam
apoiar os rendimentos mais baixos: o aumento do salário mínimo, o aumento das transferências sociais e a alteração dos benefícios fiscais para os filhos. Por isso não é inteiramente verdade que o OE2016 penaliza as classes mais baixas em favor das classes médias. Dito isto, é preciso fazer muito mais para reduzir os elevados níveis de desigualdade que existem em Portugal.
-Q: Um aspecto-chave que está a emergir fortemente nos últimos meses tem a ver com o resgate dos bancos pelo Estado, que, segundo alguns cálculos, ascendem a cerca de 40 milhões de euros... R: Basicamente, existem dois motivos que levaram ao fracasso de quatro bancos, incluindo aquele que era o terceiro maior do país: por um lado,
houve casos de má gestão; mas 15 anos de
crescimento económico medíocre foram definitivamente o factor que mais determinou a
acumulação de grandes quantidades de empréstimos malparados. É um fenómeno diferente do ‘subprime’ ou de outros activos tóxicos. Num país que está há muitos anos em crise também a actividade bancária acaba por ser penalizada.
-Q: É possível calcular quanto o Estado terá de gastar como consequência da falência de bancos? R: Não, é muito difícil fazer esse cálculo, porque há uma suspeita de que
as dívidas incobráveis ainda não foram totalmente contabilizadas pelos bancos, a fim de manterem os seus rácios de solvabilidade.
-Q: O governo de Costa deveria, então, reduzir ainda mais as expectativas... R: É um dos muitos riscos que o governo irá enfrentar. Outros incluem a
evolução muito incerta da economia internacional, a política monetária europeia e o impacto dos estímulos previstos no OE2016.
-Q: Quais foram os resultados de quatro anos de Troika? R: O programa de ajustamento Português teve três objectivos principais: assegurar a sustentabilidade das finanças públicas, melhorar a competitividade da economia e estabilizar o sistema financeiro. Hoje vemos que o sucesso nos dois primeiros eixos - as finanças públicas e da competitividade -
é muito questionável. E no que respeita à estabilidade do sistema bancário parece que
ainda está tudo por fazer.
-Q: Diz que o OE2016 tem muitos aspectos positivos, mas que é manifestamente insuficiente para resolver os problemas estruturais... R: No actual contexto Português
é impossível simultaneamente criar emprego, pagar a dívida nos termos previstos e cumprir as regras orçamentais europeias – é o que eu chamo o triângulo das impossibilidades da política orçamental. A opção da troika e do Governo anterior consistiu em concentrar-se na aplicação das regras orçamentais e no pagamento da dívida pública, deixando o desemprego crescer. Um governo que queira contribuir para a criação significativa de emprego terá de abdicar de cumprir um dos dois outros objectivos. A não ser que
as condições de pagamento da dívida as regras orçamentais venham a ser alteradas na União Europeia, não é possível fazer as três coisas ao mesmo tempo...
-Q: ... Logo? R: Logo, ou tomamos a iniciativa de
renegociar a dívida e/ou de desrespeitar as regras orçamentais, sujeitando-nos à enorme pressão das lideranças europeias (como se viu no caso grego)
ou desistimos de recuperar a economia, assistindo a mais 15 anos de estagnação, com efeitos
dramáticos sobre o emprego e a emigração.
-Q: O rácio dívida pública/PIB, que passou nos últimos 4 anos de 100 a 130%, é sustentável? R: Portugal
paga cada ano cerca de 4,5% do PIB em taxas de juros sobre a dívida pública. Isto significa que para o Orçamento estar equilibrado
é necessário cortar todos os anos na despesa pública. Na verdade,
não há nenhum país que tenha conseguido pagar uma dívida tão elevada sem ser num contexto de forte crescimento económico...
-Q: ... Mas depois do programa de ajustamento não deveria ter ocorrido esse crescimento? R: Portugal
não pode crescer porque não tem controlo sobre sua moeda, não pode promover as exportações, ao mesmo tempo que tem de prosseguir uma política de contenção orçamental. Neste contexto,
a reestruturação da dívida torna-se uma questão
fundamental e acredito que, na realidade, todos o reconhecem, sem querer dizê-lo abertamente.
-Q: Por reestruturação da dívida entende a redução dos montantes ou o alargamento dos prazos? R: Do meu ponto de vista, o objectivo é
reduzir significativamente os juros a pagar todos os anos, é pouco relevante como se lá chega. A economia portuguesa não pode recuperar se 4,5% do PIB têm de ser alocados anualmente ao pagamento dos juros da dívida. Este
é um suicídio lento, pelo que tem de ser encontrada uma solução, seja qual for a via.
-Q: Considera possível reestruturar a dívida? Há sensibilidade para esta solução ou a alternativa é a saída do euro? R: A saída do euro ou uma situação de confronto unilateral entre o país e a UE é um cenário muito pouco provável, por duas razões: primeiro, porque
o poder de negociação de Portugal é actualmente muito limitado; segundo, porque
os custos de saída do euro são muito mais visíveis para o público do que os custos associados ao contexto austeritário actual. Dito isto, não posso descartar por completo a possibilidade de Portugal
entrar em rota de colisão, levando ao abandono da moeda única. Em qualquer caso, os problemas fundamentais causados pela disfunção da zona do euro vão continuar, o que vai levar a um
aumento das tensões políticas na UE e o desfecho é difícil de prever.
-Q: Qual é a lógica por detrás de uma política económica suicida? R: Portugal tem
3 tipos de desequilíbrio macroeconómico fundamentais:
as finanças públicas, a dívida externa e o desemprego elevado. Não é possível corrigir os três ao mesmo tempo. O FMI privilegia a redução da dívida externa até mais do que a dívida pública. Na perspectiva do FMI,
a dívida externa pode ser reduzida através da desvalorização interna, o que tem um efeito duplo: por um lado, permite
ganhar competitividade baixando o preço das exportações; e, por outro lado, leva a uma
redução das importações, porque o investimento e o consumo diminuem.
Q: Com que consequências? R: Os
efeitos dessas políticas são devastadores não apenas sobre o emprego, uma vez que criam as condições para
uma recessão permanente, mas também sobre as contas públicas, porque o impacto positivo das exportações sobre as finanças públicas é muito baixo. O
Estado ganha mais quando os produtos das empresas são vendidos internamente, por meio de impostos sobre o consumo, do que quando são vendidos no exterior. Logo, a opção por privilegiar a correcção da dívida externa põe em causa a prossecução dos outros dois objectivos: crescimento do emprego e finanças públicas.
-Q: Se as consequências das políticas austeritárias são claros para todos, por que se insiste no erro? R: Não é possível ter economias com estruturas produtivas tão diferentes como as que existem na UE e, ao mesmo tempo, viver com as mesmas regras de política monetária, a menos que se verifique uma de duas coisas:
ou há uma enorme transferência de recursos (como aqueles que existem, por exemplo, entre o norte e o sul de Itália);
ou então há um
empobrecimento acelerado e duradouro das economias que têm estruturas de produção menos competitivas. A maioria das instituições internacionais considera politicamente inviável a primeira hipótese – e, provavelmente, têm razão. Sendo assim, a solução para a preservação da zona euro tem de passar por
promover a flexibilidade e a desvalorização interna das economias mais fracas.
-Q: A coligação entre PS, PCP e BE demonstrou nas últimas semanas grande solidez, o que se pode esperar no futuro? R: O facto de haver hoje em Portugal uma
direita convictamente neoliberal é o maior seguro de vida para o actual governo, porque nenhum dos partidos de esquerda quer ser visto com responsável de um
regresso a políticas extremamente agressivas para a população, que a direita continua a defender. Assim, embora
o BE e o PCP enfatizem a sua posição crítica em relação ao comprometimento do PS com as regras orçamentais europeias, enquanto for possível
obter políticas mais favoráveis para os trabalhadores e para o conjunto da população não espero que haja uma ruptura da coligação que permitiu a formação deste governo.
-Q: Como tem sido percepcionado pelo público o novo Orçamento de Estado: com entusiasmo, oposição ou indiferença? R: Por enquanto, não existe nem uma grande oposição, nem um grande entusiasmo. Parece-me que há boas razões para que não haja nem uma coisa nem outra, porque o que temos é o menor dos males – e
o menor dos males nunca suscitou muitos ódios nem muitos amores.