A ideia de sermos governados por representantes e não diretamente tem, no essencial, que ver com duas razões: com a ideia segundo a qual as decisões políticas exigem um certo tipo de mediação discursiva e técnica entre as vontades individuais dos representados e as decisões finais, para as quais os representantes e o seu enquadramento institucional estão especialmente preparados; com a quantidade e complexidade das decisões das sociedades contemporâneas, por definição incompatíveis com as possibilidades decisionais diretas.
Acontece que o “serviço” de mediação decisional dos representantes tem, simplesmente, falhado, indo vezes de mais ao arrepio dos interesses da maioria esmagadora dos representados. Algo de estranho ocorre num sistema em que a “mediação” tem, tantas vezes, o estranho efeito de se virar contra os interesses da fonte da soberania democrática, os eleitores, como se o racional da decisão dos políticos fosse, por natureza, diverso do racional da deliberação popular.
... Mas a representação precisa de ser melhorada, sendo-lhe acrescentados mecanismos de escolha direta dos cidadãos. Ao contrário do que, por exemplo, Francisco Assis escreveu (“O problema das nossas democracias... não reside numa insuficiência de transparência, num excessivo distanciamento no interior dos mecanismos de representação, num défice de sufrágio e de fiscalização públicos”), o problema da nossa democracia não é representação/mediação a menos mas representação/mediação a mais, ao ponto de a mediação ter substituído a coisa mediada, tendo-se afastado completamente dela. Num certo sentido, é preciso retomar algum do impulso democrático originário (grego e romano), aquele em que os cidadãos estavam diretamente presentes às decisões sobre a sua vida concreta. Ora, nos antípodas do que aqui defendeu F.Assis, aquilo a que hoje se assiste no nosso sistema político não é à recusa da política mas antes à monopolização da decisão política por parte de uma oligarquia política, com recusa das instâncias concretas e vivas de mediação e deliberação sociais. Claro que a oligarquia pode dar-se ares de aristocracia e dizer que essa deliberação “viva” não tem valor racional, que não passa de uma “turba” economicamente sobredeterminada (como se essa sobredeterminação simplesmente não existisse ou, a existir, não tivesse nenhum valor). Mas isso não é mais que a confirmação do que, afinal, se quer negar. A de que certa oligarquia política tomou para si o exclusivo da mediação e deliberação racionais, tomando-se como juiz exclusivo não só do que é democrático mas também do que é racional. A “progressiva castração do discurso e da acção políticos”, como escreve Assis no texto referido, não derivam de um excesso, ou falta, de deliberação popular e social mas de um deficit, na verdade uma anulação, dessa deliberação, substituída por poderes fácticos instalados sobretudo no ambiente e no contexto dos processos de deliberação representativa (ainda que também no âmbito da deliberação popular direta), de que as relações espúrias, mas às claras, dos governantes com os poderes económicos e bancários são, mais que evidentes, verdadeiramente esmagantes. O discurso de F.Assis sobre o assunto parece, assim, um caso típico de obsessão: se a mediação e a representação política tradicionais falham por se afastarem da coisa a mediar, instilemos mais mediação e mais representação, afastemo-nos ainda mais da mediação deliberativa popular e social, supostamente transida de irracionalidade (“Essa é a conversa dos demagogos”).
Por sua vez, a crise da democracia tem diretamente que ver com a crise da igualdade como valor fundamental. Os conflitos políticos articulam interesses e diferenças entre grupos sociais. Se a deliberação democrática se torna um exclusivo da representação política tradicional, a tendência natural é o reforço da oligarquia político-institucional-económica, dadas as suas íntimas articulações. Assim sendo, quanto mais a democracia deliberativa se rarefaz no regaço de uma oligarquia, mais a desigualdade social e económica se acentuam, através dos mais diversos meios, como seja acabando com os principais instrumentos de ascensão social como a escola pública, o acesso à universidade ou desequilibrando as relações de força entre os empresários e os trabalhadores.
Debilitadas a democracia e a igualdade, a liberdade encolhe necessariamente. Desde logo a liberdade de expressão. O acesso dos mais pobres aos meios de comunicação de massa mais prestigiados, mais racionais, o principal recurso para a obtenção de discursos racionais oficiais, torna-se quase impossível. A sua propriedade e acessibilidade por parte da oligarquia económica facilitará, necessariamente, o acesso aos seus aliados preferenciais, a oligarquia política, a partir da qual poderá decidir sobre a natureza do que é e não é racional, legitimando e deslegitimando os discursos, até uma cisão definitiva (?) entre o povo e os representantes, os racionais e os irracionais. Mas a perda da liberdade de expressão manifesta-se também, e talvez fundamentalmente, pela despolitização dos âmbitos sociais públicos e privados, onde as racionalidades que exprimam as conflitualidades e as cisões sociais serão, são, deslegitimadas e, até, proibidas, por instabilizarem aquilo que é dado por politicamente correto, o mesmo é dizer, racional. A análise do perigo de dissolução da ideia e da prática das liberdades expressivas e políticas poderia ir mais longe, mas não há espaço.
Termino como comecei. Sim, a democracia, a igualdade e a liberdade estão em crise. E sim, há uma divisão entre a direita e a esquerda sobre a natureza destes desafios, que passa pelo reconhecimento da deliberação e participação cívicas, sociais e pessoais, percebendo a necessidade urgente da renovação da mediação e deliberação política institucional, recuperando e rejuvenescendo as velhas tradições republicanas da cidadania ativa e das escolhas diretas.