Ainda Chávez (-por Sérgio Lavos, Arrastão)
Um artigo de Owen Jones no insuspeito The Independent:
"Hugo Chávez tirou milhões da pobreza - e mesmo os seus adversários disseram que ganhou eleições forma justa e limpa Se queremos aprender alguma coisa sobre direitos humanos na Venezuela antes de Hugo Chávez, basta googlar "
Caracazo". É preciso ter um estômago forte. Em 1989, o então presidente Carlos Andrés Pérez ganhou as eleições apoiado por uma feroz base opositora das ideias de mercado livre: o
FMI era uma "bomba de neutrões que matava pessoas, mas deixava os edifícios intactos", dizia ele. Mas após ter chegado ao
palácio presidencial, deu uma dramática volta de noventa graus, implementando um programa de
privatizações e aplicando uma terapia do choque neoliberal. Com a liberalização do preço dos combustíveis, estes aumentaram brutalmente, levando os venezuelanos empobrecidos para as ruas. Soldados abateram manifestantes a tiro. Morreram até 3000 pessoas, uma contagem de mortos horrível se comparada com a do massacre da Praça de Tiananmen - num país com 43 vezes menos pessoas.
Foi o seu golpe falhado contra o assassino e cada vez mais corrupto governo de Pérez, em 1992, que lançou Chávez para a fama. Apesar de preso, Chávez tornou-se um símbolo para os pobres da Venezuela, há longo tempo a sofrer. Quando ganhou de forma esmagadora as eleições de 1998 com a promessa de usar o dinheiro do petróleo para ajudar os pobres, Venezuela era um desastre. O rendimento per capita tinha regredido até valores de 1960. Um em cada três venezuelanos viviam com menos de 2 dólares por dia. Os proveitos do petróleo estavam reduzidos ao mínimo.
Ao longo dos próximos dias, vai ser repetido de forma sistemática que Hugo Chávez era um ditador. Um estranho ditador: desde 1998, houve 17 eleições e referendos no país. Podemos pensar que foram fraudulentos. Quando venceu por larga margem em 2006, o antigo presidente dos EUA, Jimmy Carter, esteve entre aqueles que disseram que ele tinha ganho de forma justa e limpa. Nas últimas eleições, em Outubro de 2012, Carter declarou que "posso dizer, a partir das 92 eleições que monitorizei, que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo". Eu estive lá: podem pensar que eu sou como aqueles ingénuos esquerdistas ocidentais que visitavam as aldeias Potenkin na Rússia estalinista. Pertenci a uma comissão eleitoral verdadeiramente independente, composta por apoiantes e adversários de Chávez, que tinha sido anteriormente convidada pela oposição para supervisionar as suas eleições internas. Encontrámo-nos com importantes figuras da oposição que se manifestavam na rua contra Chávez, mas admitiram que viviam em democracia. Quando perderam as eleições, aceitaram a derrota.
Justiça Social
Na verdade, o próprio Chávez também teve de aceitar a derrota: em 2007, perdeu um referendo, e não protestou os resultados. Antes de ele chegar ao poder, milhões de venezuelanos nem sequer estavam registados para votar: mas campanhas massivas de recenseamento praticamente duplicaram o eleitorado. Há mais 6000 mesas de voto agora do que havia antes de Chávez.
Por outro lado, as credenciais democráticas de muitos dos seus adversários certamente são questionáveis. Em 2002, um golpe ao estilo de Pinochet foi tentado contra Chávez, e apenas foi evitado por causa de um levantamento popular. Os media privados em geral apoiaram e incitaram abertamente ao golpe: imaginem que Cameron era afastado do n.º 10 de Downing Street por generais britânicos apoiados e incitados por estações televisivas de notícias. Mas os media na Venezuela são dominados por privados, alguns dos quais fazem parecer a Fox News esquerdistas ternurentos. A televisão pode ser justamente acusada de favorecer o governo, e talvez por isso apenas tenha uma audiência de 5,4%. Dos sete maiores jornais nacionais, cinco apoiam a oposição, e apenas um é apoiante do governo.
A verdade é que
Chávez ganhou uma eleição após outra, apesar da muitas vezes
viciosa hostilidade dos media,
porque as suas políticas mudaram as vidas de milhões de venezuelanos que eram antes ignorados. A
pobreza caiu de quase metade da população para 27,8%, enquanto a pobreza extrema baixou para quase metade. Seis
milhões de crianças recebem diariamente refeições gratuitamente; o acesso aos
cuidados de saúde gratuitos é quase universal; e os gastos com
a Educação quase duplicaram em percentagem do PIB. O programa de
alojamento lançado em 2011 conseguiu construir quase
350 000 casas, ajudando centenas de milhar de famílias que viviam em bairros da lata e casas degradadas. Alguns dos presumidos críticos estrangeiros deram a entender que Chávez efectivamente comprou os votos dos pobres -
como se ganhar eleições em consequência de se ter criado maior justiça social fosse uma forma de suborno.
Alianças
Isto não significa que Chávez não possa ser criticado. A Venezuela já tinha uma alta taxa de criminalidade quando ele foi eleito, mas a situação piorou desde aí. Cerca de 20 000 venezuelanos morreram em crimes violentos em 2011: uma taxa de mortalidade inaceitável. Tanto como as drogas, a liberalização da posse de armas e a desestabilização provocada pela vizinhança da Colômbia, devemos culpar uma polícia fraca (e muitas vezes corrupta). Apesar de o governo estar a começar a constituir uma força policial nacional, o crime endémico é uma verdadeira crise. Quando falei com venezuelanos em Caracas, a assustadora falta de segurança foi um problema referido tanto por aliados como por adversários de Chávez.
E depois há a questão de algumas associações de Chávez a nível internacional. Apesar dos seus aliados mais próximos serem governos de esquerda da América Latina - quase todos defendendo Chávez de forma apaixonada das críticas oriundas do estrangeiro - ele também apoiou ditadores brutais no Irão, na Líbia e na Síria. Certamente prejudicou a sua reputação. É claro que no Ocidente não podemos acusar Chávez de consciência limpa. Apoiamos e armamos ditaduras como a da Arábia Saudita; o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair recebe 13 milhões de dólares da ditadura do Kazaquistão pelo seu trabalho. Mas a nossa própria hipocrisia não absolve Chávez da crítica.
A chamada Revolução Bolivariana era demasiado dependente da reputação de Chávez, e inevitavelmente a sua morte levanta questões sobre o que irá acontecer no futuro. Mas não duvidemos: Chávez era o democraticamente eleito campeão dos pobres. As suas políticas tiraram milhões da pobreza e da mais abjecta miséria. Ele representou um corte com anos de regimes corruptos e com um sinistro desempenho na área dos direitos humanos. Os seus êxitos foram atingidos sob a ameaça do um golpe militar, a agressividade hostil da imprensa e fortes críticas internacionais. Ele provou que é possível resistir ao dogma neoliberal que exclui grande parte da humanidade. Ele será chorado por milhões de venezuelanos - e é difícil não entender porquê. "
Santo Chávez e o pecado do soberba (-por D.Oliveira, Arrastão e Expresso online)
Não vou aqui desenvolver sobre o complexo processo político venezuelano, com particularidades que a vontade de transformar Chávez num herói ou num vilão geralmente esquecem. Não vou falar da melhoria das condições de vida de muitos venezuelanos, do facto de 43% do orçamento do país ser para políticas sociais, da mortalidade infantil ter caído para metade, do analfabetismo ter sido drasticamente reduzido e da Venezuela ser, com o Equador, o país da América do Sul com a maior redução da taxa de pobreza entre 1996 e 2010.
Não vou falar da corrupção e da nova elite "bolivariana" que, em torno de Chávez, enriqueceu às custas do novo regime. Nem da desastrosa política económica que não está a preparar a Venezuela para um futuro sem petróleo.
Não vou falar de uma política que deu dignidade aos miseráveis, nem de um tresloucado populismo que partiu um País a meio. Não vou falar da justa resistência a um imperialismo que sempre tratou a América Latina como um quintal, pondo e depondo governantes, sugando os seus recursos e promovendo tiranetes. Não vou falar de amizades impensáveis com teocracias que nenhum homem de esquerda pode tolerar. Para além de conseguir aborrecer chavistas e antichavistas ao mesmo tempo, o que é sempre salutar, de pouco valeria neste momento. Aquilo de que quero falar, a propósito de Chávez, é de uma doença política, especialmente presente na América Latina, mas transversal a toda a vida política: o culto da personalidade.
É habitual, em movimentos políticos, sobretudo movimentos políticos revolucionários (mas não só), substituir o corpo das ideias, abstrato e incompreensível para quem não tenha preparação política, pela personalidade de um só individuo, facilmente apropriável por todos. Quando se trata de alguém que já morreu, a coisa é menos grave: cria-se um herói cujas características são devidamente moldadas para servir uma causa. Quando essa pessoa é viva e tem poder, isso implica que o poder se concentra nas suas mãos e as ideias pelos quais um movimento político se bate dependem das idiossincrasias desse individuo. Concentrar a simbologia de um processo político num homem dá a esse homem um poder extraordinário. Na realidade, dá-lhe um poder absoluto. E se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. O mais sólido dos democratas - que Chávez não seria - transforma-se num ditador se nele concentrarmos todo o poder político.
As intermináveis conversas de Chávez na televisão, o absurdo culto da personalidade que promoveu, a exposição de toda a sua vida pessoal, para uso político, a evidente paranoia que o levou a culpar tenebrosas forças pela sua doença, a forma como tentou eternizar-se no poder, fazendo por moldar a Constituição de toda uma nação às suas conveniências pessoais, tudo mostra um homem que olhava para si próprio como a encarnação da pátria e da sua revolução.
Dirão que a América Latina é assim mesmo, como a direita poderia dizer que as ditaduras sanguinárias que por ali vingaram eram mais características culturais do que políticas. Mas o culto da personalidade está, como a Europa sabe, bem longe de ser uma particularidade latino-americana. É uma doença política. Uma doença contrária àquelas que devem ser todas as convicções da esquerda e de qualquer democrata. Porque o culto da personalidade limita o debate democrático, dando a um homem o poder da infalibilidade. Porque destrói o sentido critico, transformando todos os que participem no mesmo projeto político em meros seguidores de um iluminado e todos os que a determinado momento se lhe oponham em traidores. Porque, em vez de distribuir o poder pelo povo, o concentra ainda mais. Já não apenas numa classe ou num determinado grupo, mas numa só pessoa. Porque faz depender do bom-senso de uma só pessoa os bons resultados de um processo que deve ser colectivo. E é difícil alguém que concentra tanto poder não se embriagar com ele e manter a lucidez. Porque faz depender um País, um partido, uma revolução de uma só cabeça, sempre limitada na sua sabedoria, inteligência e até na sua esperança de vida.
Não sei se o processo revolucionário venezuelano, ache o que se achar dele, sobreviverá a Chávez. Se sobreviver, talvez a sua morte, sempre lamentável no plano pessoal, seja uma boa notícia. E ficará provado que o chavismo era mais do que Chávez. Se não, é mais uma boa lição para todos os que, em democracia ou fora dela, na América Latina ou na Europa, continuam a acreditar em movimentos carismáticos. Sim, todas as religiões precisam do seu ícone. E a política simula sempre a religião - em vez da missa o comício, em vez do santo o mártir, em vez do altar o púlpito. Mas os ícones vivos, por terem vontade própria, são demasiado perigosos pelo poder que inevitavelmente concentram em si.
Um movimento carismático transporta sempre em si, pela sua natureza, a semente da tirania. Na política devemos ter sempre a cautela de acreditar que os que lideram não são menos frágeis do que nós. E quem se reclama de movimentos emancipadores não pode, em simultâneo, colocar a sua vida nas mãos de um homem. Nem a sua, nem a de um povo.