Segunda-feira, 20.04.15

Mariano Gago

 

«Quando se escrever a história do Portugal Democrático, haverá uma página sobre a qual não haverá dúvidas: aquela onde se irá contar a revolução e a festa que tiveram lugar no nosso país no domínio da investigação e da cultura científica. Esta história tem muitos actores mas um só protagonista: José Mariano Gago, que concebeu, negociou e pôs em prática essa estratégia, trabalhando com todos os parceiros de boa vontade, em Portugal e no estrangeiro, ao longo de diferentes governos e de muitos anos, e que transformou um sistema científico quase inexistente numa rede moderna capaz de se renovar e crescer, ao serviço do desenvolvimento, da cultura e da democracia. Que desapareça num momento onde a sua herança está a ser meticulosamente desmantelada é uma ironia da história e uma chamada de atenção para todos nós.» -- JV. Malheiros, no Público.


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Quinta-feira, 19.03.15

A  hepatite  dos  mercados        (16/3/2015, T. Domingues, M74)

 A actual polémica sobre um medicamento recente para o tratamento das patologias crónicas associadas à hepatite C deixa de lado uma discussão que julgo ser oportuna dadas as escolhas políticas que se têm tomado na configuração do sistema científico e tecnológico.
   Deixando de lado os argumentos de quem se apressou a contabilizar o valor de uma vida humana, sobre a égide de que, existindo recursos limitados, nos devemos debruçar sobre a contabilidade de quem salvar, tentemos regressar à origem do problema.      A investigação científica tem sido um dos mais fortes motores de desenvolvimento dos povos, da sua produção surge conhecimento, com maior ou menor visibilidade no nosso quotidiano, que impactam, quase sempre, de forma directa ou indirecta, nas nossas vidas.    Sem Fleming, em 1928, não teríamos salvo os milhões de pessoas que salvámos desde então com o recurso a antibióticos, recuando ainda um pouco mais, sem Pasteur não saberíamos sequer que precisávamos de antibióticos para as salvar. Sem Maxwell é bem provável que não tivéssemos TV nem Rádio e, antes deste, sem Newton (para os matemáticos sem Leibniz !) não teríamos o cálculo usado por Maxwell nas suas famosas equações.  Os exemplos possíveis de apresentar são uma lista de cabimento enciclopédico e ficaríamos muito surpreendidos de saber do que dependeram inúmeras descobertas e invenções hoje vulgarizadas quer pela sua difusão ou utilização.
      Esta lista e os seus intervenientes saberiam (e sabem!) bem que o que muitas vezes nos apressamos em catalogar de ciência fundamental, teórica ou prática é, na verdade, um vasto conjunto de produção em áreas que se interceptam mutuamente, não existindo nenhuma que se encontre isolada ou estanque de todas as outras.   No essencial, uma sociedade orientada para a investigação científica, e por isso para o conhecimento, não pode deixar para trás nenhuma delas, i.e., políticas de financiamento/ investimento científico não são compatíveis com “parentes pobres” da ciência sob a pena de enviesamento do conhecimento humano, crime que nos pode mesmo extinguir.
      A produção de conhecimento e a sua acumulação têm uma longa história bélica, exemplo disso seria a forma como guardavam na Baviera um certo mosteiro beneditino (onde trabalhou Fraunhofer) onde se produziam vidros de alta qualidade e lentes, tecnologia que na altura trazia enorme vantagem a quem sabia os seus segredos. Desde então, e até hoje, o conhecimento acumulado continua a ser um desnivelador que traz enorme vantagem a quem o detém, estando no centro de muita da dominação económica que vivemos hoje.   Mais recentemente, acresce a este interesse soberano o interesse privado.   É razoável afirmar que a investigação científica e a sua produção sempre tiveram um carácter público, no sentido em que a principal fonte de financiamento saía do erário público de vários países. Tal visão alterou-se no final do séc. XX, quando se tornou um desígnio internacional a sequenciação do genoma humano, peça fundamental do avanço em várias áreas e com um impacto muito forte nas ligadas à saúde humana.   Detectando o potencial gigante de deter, no sentido de patentear, este tipo de conhecimento, empresas privadas, como a Celera Genomics, abriram guerra com o projecto internacional em curso, apostando que através do financiamento privado conseguiriam realizar a façanha mais depressa do que o dito consórcio público.   O resultado, já bastante evidente na altura, está à vista. Empresas privadas ficaram então donas legítimas de um tipo de conhecimento fundamental e mostraram, desde o início, a sua intenção de multiplicar o dinheiro investido, desde logo na indústria farmacêutica.
    Não há mercado como o da vida humana, que se alimenta do desespero de quem tudo dá em troca da sobrevivência e, sabendo isso, o capital encontra-se disponível para manter seu tudo aquilo que render dinheiro, mesmo algo tão obviamente público como o conhecimento do genoma humano.  Os povos que se deixarem reféns da iniciativa privada para a investigação científica estão assim condenados a serem dominados por interesses bem diferentes dos seus, interesses esses que nunca capitularam por qualquer lei moral tendo como fim único o lucro. Apenas o investimento público é um garante para que o conhecimento permaneça público, ao serviço dos povos e do seu desenvolvimento. Para quem ache que apenas esta competição dos mercados leva ao desenvolvimento, que olhe para o exemplo de como o homem “aterrou” na Lua.
    Quanto à actualidade do medicamento para a hepatite C, encontramos um perfeito exemplo do que significa deixar a investigação em mãos alheias!   Imunes a notícias de alguns países mais pobres, incapazes de fazer face aos custos de certas terapias essenciais à saúde pública, vemos todos os dias morrer de SIDA milhares de pessoas sem acesso a anti-retrovirais em Africa, quando a doença já têm o estatuto de crónica na OMS, e em números ainda maiores as que não têm acesso a antibióticos de última geração para inúmeras enfermidades que só matam quem não tem acesso a estes.    Há casos em que Estados se iniciaram no desenvolvimento de genéricos de medicamentos que não podem pagar, vendo-se arrastados para processos de violação de patentes com a grande e poderosa indústria farmacêutica.    Fica assim a vida de milhares de pessoas ameaçada pela lei do mercado, quando deveria bastar-nos apenas a vida de uma, para percebermos que saúde é um direito inalienável e imiscível com qualquer tentativa de negócio.
    Passos/ 1ºMinistro, na sua habitual demagogia infantil, diz que foi atraiçoado pelos mercados, que tão prontamente alimenta, não façamos nós o mesmo erro!


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Terça-feira, 01.07.14

Homens e super-homens  (-por A.H.Cristo, 30/6/2014)

  ...  ao contrário de tantas outras inovações científicas, o melhoramento humano não é somente uma questão ética. A introdução desses mecanismos de melhoramento (fármacos ou desenho genético) alterará a nossa identidade, é certo, mas, sobretudo, abalará os pilares das nossas sociedades democráticas e liberais.

Vejamos o caso mais evidente, o do princípio da igualdade. A civilização ocidental baseia-se no reconhecimento de que todos os homens são iguais, apesar das suas diferenças (altura, força, inteligência, cor de pele, etc.). Ou seja, que as suas diferenças são indiferentes. Por isso, todos têm os mesmos direitos e deveres, e ninguém está acima das regras ou das leis. Mas, e se um dia essas diferenças deixassem de ser indiferentes?

Façamos o exercício através de um cenário considerado plausível pela investigação. Imaginemos que, com a possibilidade de proceder a modificações genéticas para aumento das capacidades cognitivas, os homens que o fizessem ficariam com uma inteligência de tal modo superior aos que não o fizessem que, irreversivelmente, a comunicação entre eles se tornaria impossível – tão impossível quanto alguém ter uma conversa com um gato. Aqui, criar-se-ia, na prática, uma distinção entre tipos de seres humanos (em que uns são objectivamente superiores a outros). E, sendo as suas diferenças significativas e inultrapassáveis, nunca mais estes homens poderiam ser tratados como iguais.

    ... Não é possível garantir que todos acedem à mesma tecnologia, muito menos que todos o façam ao mesmo tempo. Por diversas razões. Primeiro, por causa do tempo. Tal como esta possibilidade está prevista, as intervenções genéticas serão feitas em fetos ou embriões. Assim, quem tiver nascido antes da introdução dessa tecnologia nunca terá acesso a melhoramento genético. Além disso, quem nascer 20 anos após um indivíduo sujeito a intervenção genética terá acesso a melhor tecnologia e, como tal, a um aumento cognitivo superior ao desse indivíduo. Segundo, porque há um desafio social. É ingénuo acreditar que a tecnologia será a mesma para todos. Tal como acontece hoje, quem tiver mais dinheiro terá certamente melhor tecnologia, melhores médicos, melhores técnicos e, claro, melhoramentos genéticos mais significativos. Terceiro, porque há um problema de escala. Mesmo que acreditemos que, num país, o Estado garantirá equidade no acesso, em muitos outros sítios do planeta não será assim – em muitos países, esta tecnologia não existirá sequer. E, assim, haverá sempre quem não tenha acesso a melhoramentos genéticos.

    Este é apenas um cenário entre muitos outros – sobre questões laborais, sobre o Estado Social, sobre o sistema educativo –... encontrar soluções para os desafios que enfrentaremos será mais complexo do que nunca. A seu tempo, a mudança virá. Até lá, compete-nos estar preparados.

    Nesse sentido, as recentes declarações de Alexandre Quintanilha (coordenador de um projecto europeu sobre melhoramento cognitivo) devem ser lidas com alguma apreensão. Numa brevíssima entrevista ao Expresso (28.06.2014), Quintanilha afirma que o melhoramento cognitivo não é um fenómeno novo – “porque a técnica mais antiga para a potenciação neuronal é a educação (…) e todos nós achamos hoje que a educação é uma coisa boa, com efeitos muito positivos”. Sim, a educação potencia. Mas a comparação tem perigosos limites. É que o consumo de fármacos e o recurso a tecnologia para melhoramento cognitivo fazem mais do que potenciar as nossas capacidades – alteram-nas. E isso é um fenómeno novo. Não perceber isto é meio caminho andado para o desastre.



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Sábado, 18.01.14

    Cérebros  em  saldo   (-por D.Oliveira, 17/1/2014, Arrastão e Expresso online)

Gráf. do PÚBLICO

     A prioridade de investimento na Investigação e Desenvolvimento (I&D) é um dos poucos consensos nacionais virtuosos das últimas décadas. Isso levou a uma autêntica revolução neste sector. Portugal, que em 1986 estava na cauda da cauda da CEE em número de investigadores (ou em atividade diretamente ligada à investigação), pode apresentar hoje números europeus bastante atrativos.

     Uma das queixas, nesta matéria, é que, apesar deste salto, temos menos doutorados a trabalhar nas empresas do que a maioria dos nossos parceiros europeus. É verdade. E isso tem muito a ver com o atraso estrutural do nosso tecido produtivo, muito baseado em serviços localizados, protegidos e que acrescentam pouco valor ao que produzem, e do ainda reduzido investimento privado em I&D. A maioria das empresas tem demorado algum tempo a aproveitar a qualificação da nossa mão de obra. E não é só em relação aos nossos doutorados.

     Ainda assim, os sectores que hoje se mostram mais competitivos (o calçado ou o vinho) e que têm conseguido contrariar o ambiente de crise são os que aproveitaram (e acompanharam) este enorme investimento em I&D. Portugal tem, apesar de todos os erros e do euro, que dificultou a vida à nossa economia, mais capacidades para ser competitivo hoje do que tinha há 20 anos.   Porque é mais qualificado.  Isso resulta dum trabalho de décadas.  E não nos enganemos :  como nunca poderemos competir com a mão de obra mais barata, apenas quem aproveite o trabalho qualificado e a inovação científica e tecnológica terá algum futuro no mercado aberto. (Apesar de aceitar esta abordagem, deixo para uma nota final o excesso de simplicidade desta visão*.)

     As últimas duas décadas foram, nesta matéria, duas décadas ganhas. Não terá sido o único, mas Mariano Gago, como ministro da Ciência, é talvez o rosto mais evidente desse enorme salto científico e cultural. O que lhe tem merecido o respeito generalizado, à esquerda e à direita.

     Na evolução da investigação científica as bolsas atribuídas pelo Estado têm um papel central. É assim em todo o lado e ainda mais em países com algum atraso económico, onde falta massa crítica às empresas. Sobretudo às mais pequenas, que representam uma grande parte da nossa economia. As bolsas de doutoramento e pós-doutoramento garantidas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) chegaram, em 2007, a 2031 e a 914, respetivamente. Um número europeu e que resultou do trabalho de vários governos.

     Para além das bolsas, houve um esforço para dotar os centros de investigação de pessoal e meios e preparar a urgente renovação dum sector. Para permitir que tal acontecesse, Mariano Gago criou vários tipos de contratos, para investigadores reforçarem os quadros dos centros de investigação, nomeadamente no âmbito dos Laboratórios Associados e do programa Ciência. Tratava-se duma situação de precariedade (na maior parte dos casos, os contratos eram de 5 a 10 anos), que ninguém deseja. Mas a comunidade científica vivia na convicção de que pelo menos os melhores seriam absorvidos pelo sistema quando a renovação de pessoal acontecesse.

    Por fim, assistimos todos os anos nas últimas duas décadas a um aumento do investimento nacional (em percentagem do PIB) em I&D. Em 1995 o investimento público em I&D estava em 0,4% do PIB, em 2012 estava em 0,9%, apenas a uma décima do defendido como ideal pela União Europeia. Infelizmente, estamos muitíssimo longe dos recomendados 2% do PIB em investimento privado em I&D (é menos de metade). Ainda assim, também esse teve uma evolução paralela e semelhante ao que aconteceu no sector público.

    Infelizmente, os últimos três anos romperam com o consenso político que vigorava até aqui. Aliás, um dos principais papéis de Nuno Crato tem sido romper com os melhores consensos que vigoram na sociedade portuguesa, alimentando-se, para o fazer, dos piores lugares comuns que nela medram com facilidade: a nossa escola é facilitista (afinal, segundo os relatórios do PISA, há 10 anos que melhoramos a preparação dos nossos estudantes), somos um país de doutores (apesar de termos duplicado o número de licenciados em dez anos, estamos em oitavo lugar a contar do fim na Europa dos 27) e apostamos só na áreas de letras, sem interesse económico (somos o país europeu onde mais aumentaram as licenciaturas em ciências).

    Regressando à vaca fria. Desde 2010, o número de bolsas da FCT, sem as quais a investigação científica perderá muito mais do que o dinheiro que será poupado, começaram a cair. Mas nada que tenha paralelo com a queda a pique que aconteceu este ano. Foram divulgadas, na quarta-feira, as bolsas atribuídas. Trata-se duma hecatombe na investigação científica nacional. Dos 3416 candidatos para bolsas de doutoramento, só 298 as viram aprovadas. No caso dos pós-doutoramentos, os candidatos foram 2305 e só 233 a vão receber. Num e noutro caso, os números estão abaixo dos 10% de aprovação, coisa nunca vista (nas ciências sociais, dispensáveis para quem tem vistas curtas, estão abaixo dos 6,5%).

     No caso dos pós-doutoramentos, houve uma diminuição de atribuição de bolsas de 65% em relação a 2012. Nos doutoramentos, a diminuição foi superior a 70%. É uma razia. Se acrescentarmos os novos "programas doutorais FCT" (muitíssimo mais limitados), geridos pelas universidades e centros de investigação, a redução continua a ser brutal: de 40%. O número de bolsas atribuídas atira Portugal para o ponto em que estava no início dos anos 90. São duas décadas de recuo.

    Em relação a quem trabalha nos centros de investigação, as coisas estão a seguir o mesmo caminho. A nova geração de investigadores está a sair dos centros de investigação para o desemprego. Os que ficam, com "contratos de investigador FCT", que duram cinco anos e foram criados o ano passado, são muito poucos, até porque estes contratos também visam atrair investigadores estrangeiros. Na realidade, o trabalho regular da maioria dos centros de investigação está seriamente comprometido e Portugal prepara-se para um retrocesso sem precedentes nesta área.

     A  FCT, centro nevrálgico do sistema público de apoio à ciência, que por natureza depende da sua credibilidade, tem visto a sua imagem degradar-se permanentemente, com pequenos escândalos e situações de opacidade muito pouco recomendáveis, sobretudo no que envolveu a nomeação dos seus conselhos científicos. No caso do concurso Investigador FCT, um grupo de investigadores acusou abertamente a Fundação de falta de transparência, coisa nunca antes vista no universo dos investigadores, habitualmente comedidos. A exigência devia começar em casa. Mas, para Nuno Crato, tem sido apenas retórica.

     Por fim, tivemos, em 2012, a primeira quebra de investimento público (em percentagem do PIB) em I&D dos últimos vinte anos. E não é preciso ser bruxo para perceber que essa queda passará a ser um trambolhão em 2013. Isto quando esse investimento começou a ser reduzir no privado, fruto da crise, logo em 2010.

     Como disse no início deste texto, as consequências do enorme investimento em I&D, feito nas últimas décadas, só se começaram a sentir recentemente, em alguns sectores exportadores, na inovação tecnológica e com uma geração muitíssimo mais qualificada a entrar na vida ativa. Destruir isto será muito mais rápido. E traduz-se num desperdício de esforço e investimento que não tem perdão.

     Temos falado muito da perda de pessoal qualificado.  Estamos basicamente a falar de licenciados ou de jovens com formação técnica específica. Mas o que agora preparamos é a fuga dos mais qualificados entre os qualificados: doutorados, pós-doutorados e investigadores.  Sem forma de sobreviver ou de progredir na carreira, irão fugir daqui.   O dinheiro que gastámos, e que tanta falta nos fazia, será aproveitado por outros países, sem que isso tenha qualquer retorno.  Andámos, no fundo, a formar pessoas para os outros. Os que não conseguirem, por compromissos familiares, pela idade ou por a sua área de formação apenas ter utilidade em Portugal, ou ficarão inativos ou ocuparão postos de trabalho para os quais estão sobrequalificados. Um país em dificuldades que dispensa a mais qualificada de todas as suas gerações é um país sem visão. Um país que dispensa os mais qualificados dessa geração é irresponsável.

     Tenho ouvido, do governo, que não quer assentar a competitividade portuguesa em baixos salários. A realidade diz o oposto, mas seria inteligente que não quisesse. Haverá sempre países mais baratos e com mais mão de obra disponível. A alternativa a isso é acrescentar valor ao que se produz, ter um Estado servido por gente preparada, qualificar a mão de obra e apostar na investigação que levou, por exemplo, a Universidade de Aveiro a, em parceria com a PT, criar coisas tão globalizadas como o cartão pré-pagou ou a Via Verde (ou o motor de busca SAPO).  Nenhum país no planeta conseguiu promover tudo isto (qualidade, inovação e qualificação) reduzindo o investimento em Investigação e Desenvolvimento, reduzindo bolsas públicas e estrangulando a investigação científica. Ficamos por isso a perceber que não há qualquer rumo, qualquer estratégia, qualquer visão por parte deste governo.

         * Tenho alguma dificuldade em comentar as declarações de Pires de Lima, que, para justificar este corte criminoso (sem o assumir), lamenta que uma parte da investigação financiada não chegue "à economia real" e não tenham "resultados concretos que beneficiem a sociedade".  É de esperar que se tenha de explicar a alguém com poua informação que o processo de investigação científica é mais ou menos cumulativo e que há muitas descobertas aparentemente inúteis a montante de cada utilidade.   Que os cientistas aprendem uns com os outros e não é fácil avaliar assim, de forma linear e clara, à partida, a imediata utilidade prática duma investigação.  Que nenhum país que aposta na investigação consegue esse milagre que ele pretende: uma ciência pronta a ser consumida pela sociedade.  Que a ciência não é um pronto-a-vestir e que não há um "simplex" que garanta o conhecimento na hora.  Que muitas coisas que hoje multiplicam riqueza nasceram de descobertas que não procuravam o lucro e que até pareciam de pouca utilidade para a "vida real".  Arrisco-me à suprema das heresias :  que as empresas não são o único destinatário nem da investigação científica, nem da existência humana.  Há a saúde, a educação, a cultura e a pura e simples procura do conhecimento, coisas de que os humanos, esses preguiçosos, dependem desde que existem para se considerarem como tal.   Mesmo antes de haver empresas.   Que há áreas científicas com muito pouco interesse para as empresas, como a História, por exemplo.  Devemos acabar com elas ?   E que o tempo da ciência não é, porque não consegue ser, muitas vezes, o tempo do retorno imediato do investimento.   E, no entanto, sem a investigação que não garante "resultados concretos" a curto-prazo quase tudo o que as empresas vendem dificilmente teria chegado a ser inventado.   Explicar isto a um ministro que não me parecia ser ignorante é embaraçoso.   Não para quem explica, mas para o ministro.



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Quinta-feira, 24.05.12

         Para  acabar  de  vez  com  a  cultura     (-por Daniel Oliveira)

 

 

      Os subsídios à cultura têm três funções: desenvolvimento económico, defesa da liberdade de escolha e promoção da soberania cultural.

         Comecemos pelo desenvolvimento económico.

      Quando andei pela Islândia a preparar a reportagem que a revista do "Expresso" publicou há 15 dias visitei uma empresa que se tem saído muito bem nesta crise. A CCP, criada em 1997 por três jovens, é responsável por um jogo online com tanta gente registada como toda a população da Islândia. Como as suas receitas são em moeda estrangeira, não foi afectada pela desvalorização da coroa islandesa. Como tudo o que faz é exportar um serviço, não foi afectada pela crise no mercado interno. Como exporta um bem imaterial, o isolamento do país não a afecta. Como tudo o que precisa é de uma mão de obra altamente especializada, tem na Islândia o excelente lugar para trabalhar.

      A CCP é hoje a maior empresa instalada no porto de Reiquiavique e tem escritórios em Atalanta, Xangai e Newcastle. É maior do que as maiores empresas de pescas do País, o ganha pão mais seguro dos islandeses. Compreensivelmente, o Presidente da Islândia, Ólafur Grímsson, deposita muitas esperanças neste sector. Disse-me, na entrevista que então lhe fiz:

 "Vemos jovens a abrir empresas, a fazer investigação, a trabalhar nas artes, na música, no design, no cinema, na literatura, na tecnologias de informação, e percebemos que temos uma vida mais vibrante nos últimos três anos do que nos anteriores. O sucesso das economias no século XXI não dependerá do sector financeiro, mas dos sectores criativos."

      Também por cá, o sector da tecnologias de informação e do entretenimento é tratado, em discursos de circunstância de muitos políticos, como fundamental para termos algum futuro económico que não dependa de salários baixos. Regresso então à sede da CCP, onde tive uma interessante conversa com um dos responsáveis pelas relações públicas da empresa. Dizia-me Eldor Astthorsson:

 "A indústria IT não cresce num país onde não haja muita atividade cultural tradicional. É a ela que vamos buscar os músicos, os guionistas, os estilistas, os desenhadores e os realizadores que fazem os nossos jogos. Os computadores não chegam para garantir a indústria de entretenimento".

       E isto não se aplica apenas à indústria dos jogos de computador. Não há indústria do calçado, do têxtil ou do mobiliário que sobreviva sem bons designers. E não há bons designers sem bons artistas plásticos. Não há desenvolvimento das telecomunicações, dos novos media e do entretenimento sem conteúdos. E não há conteúdos sem desenvolvimento das artes. Não há turismo competitivo sem atividades culturais. E não há atividades culturais, incluindo as do puro entretenimento, sem cinema, teatro, literatura. Não há cinema comercial sem o experimentalismo do cinema de autor. Não há marketing sem publicidade, não há publicidade sem realizadores e guionistas.

       O sector cultural e criativo representava, em 2010, 3,4% do comércio mundial. Em Portugal gerava 2,8% da riqueza e dava emprego a 126 mil pessoas. Neste sector estão incluídas muitas atividades, que vão do património à publicidade. Mas o combustível desta gigantesca indústria em crescimento são as atividades culturais nucleares: o cinema, a literatura, o teatro, a dança. Sem elas, o motor para. E a criatividade que pode alimentar a economia também.

       Se os sucedâneos comerciais das atividades criativas têm retorno quase imediato, o mesmo não acontece com as atividades culturais de que se alimentam. Todos os países desenvolvidos do mundo, EUA incluídos, têm financiamento público à criação artística. E se isto é verdade em países com mercados de alguma dimensão, em países do tamanho de Portugal deveria ser indiscutível. Assim como o apoio público à Investigação e Desenvolvimento não tem retorno imediato mas é central para o desenvolvimento económico e social de qualquer país, o apoio à cultura é prioritário para quem não queira condenar uma sociedade ao subdesenvolvimento económico, social e cultural. Os subsídios à cultura não são uma esmola. São um investimento. Um pequeníssimo investimento, para dizer a verdade. Talvez dos investimentos públicos onde a relação entre o que é gasto e o retorno final é mais favorável.

          Quanto à defesa da liberdade de escolha, a coisa é ainda mais simples de perceber.

       O Estado não tem gosto. Não escolhe o que é bom e o que é mau. Sabe apenas uma coisa: se deixarmos a cultura apenas ao mercado só teremos acesso ao que tenha retorno financeiro imediato. E o que tem retorno imediato é o que agrada ao máximo de pessoas pelo mínimo investimento possível. E, acima de tudo, o que represente menor risco. A produção com intuitos meramente comerciais é, por natureza, conservadora e avessa ao risco. Inova pouco porque se dirige ao gosto mainstream. Isso não tem mal nenhum. Eu gosto de filmes comerciais. Mas se ficarmos por aí nem os filmes comerciais sobrevivem.

      É comum dizer-se que devem ser as pessoas a escolher o que querem ler, ouvir e ver. Assino por baixo. Não tenho a arrogância de pensar que o que eu gosto é melhor do que o gosto dos outros. Apenas sei que se não houver uma política pública para garantir a diversidade ela morre. E eu, como todos os outros, deixo de ter a possibilidade de escolher. Apenas posso ler, ouvir e ler o que a maioria quer ler, ouvir e ver.

       Ponho a coisa assim: sem investimento público (seja de Estados, seja de monarcas ou instituições mais ou menos públicas), não teríamos podido ouvir Bach ou contemplar grande parte do nosso património arquitectónico. E sem isso, até a nossa música comercial e arquitetura mais acessível seriam hoje muito mais pobres. Resumindo: o investimento público na cultura é a única forma, sobretudo num país da dimensão de Portugal, de garantir a liberdade de escolha que os absolutistas do mercado dizem defender.

          Por fim, soberania cultural.

      Talvez não se saiba, mas, depois do futebol e das praias, a literatura e o cinema portugueses são, de longe, os melhores embaixadores do País. Fica bem desprezar Manoel de Oliveira e João César Monteiro. Mas vão por essa Europa fora e ficarão a saber que são bem mais conhecidos do que a esmagadora maioria das nossos banqueiros ou estadistas. Claro que saem mais caros que um Saramago ou um Lobo Antunes. Apenas porque o cinema exige um investimento dispensável na escrita. Mas um país sem criadores é um país que não existe. Porque nada tem a acrescentar a um mundo globalizado. Não existe na economia, não existe na política, não existe na diplomacia.

      O cinema português assistiu a um corte de 100% de investimento público. Nenhum outro sector vive tal sangria. Neste momento, nenhum dinheiro público (que resulta de taxas sobre a publicidade e não, como muitos julgam, do Orçamento do Estado) está a ser canalizado para a produção cinematográfica. Assistimos, na música (os membros da Orquestra Metropolitana de Lisboa estão hoje em greve, garantindo eventos culturais à população de borla), noteatro e na dança ao mesmo tipo de desinvestimento público que está a levar a criação cultural à penúria absoluta. O estado de falência é generalizado. Dirão: no meio desta crise económica, o que interessa? Interessa tudo. Isto, claro, se alguma vez quisermos sair do subdesenvolvimento político, económico e social que nos atrasou e nos deixou tão vulneráveis a esta crise.

      Tenho lido, pacientemente, muitos disparates sobre os subsídios ao cinema e à cultura. Muito resulta de pura ignorância.

Noutros casos, trata-se de ressentimento social e cultural. Noutros ainda, de populismo barato, num país onde a palavra "intelectual" é usada como insulto. Sobre os prémios internacionais recebidos pelos realizadores João Salaviza e Miguel Gomes, houve mesmo quem tivesse escrito que se tratavam de subsidiodependentes de "chapéu na mão" incapazes de captar investidores internacionais para o seu trabalho. Dá-se o caso de "Rafa" e "Tabu" terem conseguido, antes dos prémios que receberam, financiamento francês, alemão e brasileiro. Porquê?

      Porque há países que sabem o que andam a fazer. Passaram, por assim dizer, à fase da maioridade. Investir na cultura (incluindo na produzida por estrangeiros) é visto como uma indiscutível prioridade política. Aqui, pelo contrário, desprezar os artistas e tratá-los como pedintes mimados rende muito aplauso fácil.

      Pagaremos cara tanta ignorância atrevida.

 (idem para o (des)investimento na Educação, Ciência, Saúde, ... e nos bens públicos.)



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