Num mundo onde existem limitações à mobilidade do capital, estas vitórias progressistas podem prejudicar uma minoria de «rentistas» enquanto beneficiam a população em geral. Nas décadas que se seguiram à segunda guerra mundial os países ocidentais viveram um enorme aumento da sua qualidade de vida que acompanhou o aprofundar destas conquistas.
No entanto, à medida que a mobilidade do capital aumenta, outro factor entra em linha de conta: o capital pode fugir. Assim, o aprofundamento do estado social, de outros mecanismos redistributivos ou de protecção dos direitos laborais acabam por servir de obstáculo à entrada de investimento e à criação de emprego consequente. Acabam por aprofundar o problema do desemprego.
As últimas duas frases do parágrafo anterior são O argumento fundamental da direita para defender o desmantelamento do estado social, e a reversão das conquistas civilizacionais da esquerda. Promove-se uma política de baixos salários e completa ausência de direitos sociais, uma sociedade mais desigual e desumana, alegando que essas situações de precariedade, baixos salários, e altas desigualdades são preferíveis ao desemprego generalizado.
E, no curto-médio prazo, num mercado comum (CEE/ UE,...), e com alta mobilidade do capital, estas estratégias propostas pela direita funcionam: ao desvalorizar o trabalho e os recursos naturais e premiar o capital, os estados conseguem mais investimento externo, mais emprego, mais prosperidade*.
Os mercados comuns podem portanto ter consequências perversas: os estados podem competir para captar o máximo de investimento, e assim atenuar o problema do desemprego. Aquele estado que menos proteger o trabalho ou o ambiente, menos tributar o capital ou combater as desigualdades, está em melhores condições para captar investimento externo se as outras circunstâncias forem semelhantes. Assim atenua ou resolve o problema do desemprego.
Mas essa situação não dura muito. Outro estado poderá desvalorizar ainda mais o trabalho, e tributar ainda menos o capital. No fim, verifica-se uma «corrida para o fundo», e todos acabam por perder. É uma dinâmica semelhante à do «jogo do prisioneiro»: aquilo que é melhor da perspectiva individual de cada jogador resulta no pior desfecho colectivo. E isto não é uma mera abstracção: temos verificado o significativo aumento das desigualdades nos países ricos ao longo das últimas décadas, com todo o impacto negativo que isso teve na qualidade de vida das pessoas.
Para se obter o melhor resultado no «jogo do prisioneiro», é necessária uma acção concertada. Ou então foge-se ao jogo do prisioneiro, recusando esta interacção estratégica. Tal como Daniel Oliveira, compreendo que estas são as duas únicas opções progressistas para combater as desigualdades que se têm acentuado de ano para ano. O pensamento propiciatório daqueles que acreditam que é possível combater as desigualdades, proteger o ambiente e valorizar o trabalho sem alterar as regras do jogo na UE e outros mercados comuns, nem sofrer um desemprego permanente de tendência crescente, esbarra com a realidade. Infelizmente parece caracterizar muito do pensamento do PS em relação à Europa.
Mas a opção de Daniel Oliveira também traz problemas. E essa opção parece caracterizar o pensamento dos outros partidos de esquerda com representação parlamentar (PCP, PEV, e BE).
-----Esquerda e Europeísmo - II
Face a essa situação, várias soluções poderiam ser propostas para lidar com as desigualdades esmagadoras e desumanas que a sociedade de então enfrentava:
-1) Inacção. Justificação: «Problema? Qual problema? Este grau de desigualdades reflecte a natureza humana, e interferir vai prejudicar todos.»
-2) Abolição do estado. Justificação: «Sem um estado central, a vontade maioritária da população acabará por se impor, e estas desigualdades tremendas passarão a ser algo do passado.»
-3) Transformação do estado. Historicamente esta proposta subdividiu-se em duas correntes:
.i) Instaurar a «ditadura do proletariado». Justificação: «Pretende-se que este regime seja temporário, e que sirva para se proceder então à abolição do estado e criação de uma sociedade sem classes.»
.ii) Democratizar o estado. Justificação: «O défice democrático da instituição «estado» é encarado como tremendo e inaceitável. Mas se a vontade popular guiar a acção dos líderes políticos, o estado poderá contribuir para diminuir as desigualdades em vez de as manter e acentuar.»
De então para cá a realidade mudou bastante. Grande parte das pessoas trabalhava, sem férias ou fins de semana, mais de 12h por dia, mal pagas e sub-nutridas. E nós sabemos qual destas abordagens melhor respondeu a este problema: a opção 3), transformar o estado foi a solução. Em particular, o ataque ao défice democrático (3-ii) foi a proposta melhor sucedida. Durante várias décadas, esta resposta contribuiu para uma acentuada redução das desigualdades e um aumento significativo da qualidade de vida de todos.
No entanto, com a evolução tecnológica, as escalas mudaram e a mobilidade do capital aumentou. A realidade económica que antes correspondia ao estado, corresponde hoje a blocos mais amplos: os mercados comuns. Um dos mais importantes é a UE e não é difícil ver algumas estruturas dirigentes a adoptar o papel que o estado tinha então: na imposição de medidas "austeritárias" ou na promoção dos interesses das multinacionais e outros grandes grupos económico-financeiros, parece que muitas vezes a UE está ao serviço do «grande capital». Isto traz-nos de volta à mesma encruzilhada.
A opção do PS é análoga à opção 1), uma resposta passiva que parece nem sequer reconhecer o problema. A resposta da CDU, BE e outros como Daniel Oliveira, é análoga à opção 2) ('abolição/abandono' da UE), uma resposta consistente mas disfuncional. No entanto, é a resposta 3ii) (democratizar o estado/U.E.) que tem maior potencialidade para resultar na promoção de uma maior qualidade de vida para todos.
Esta é a razão de fundo (embora existam muitas outras) para rejeitar acordos como o TTIP. Também é uma razão para olhar com preocupação para o défice democrático que existe na União Europeia.
No entanto, existe uma boa razão pela qual os países têm estado a agregar as suas economias em mercados comuns: eles realmente conduzem a um aumento da prosperidade. A razão económica fundamental pela qual o comercio internacional tende a promover a prosperidade dos envolvidos, com algumas excepções a título temporário (proteger uma indústria até que tenha dimensão para se impor no mercado internacional, por exemplo), já é conhecida profundamente desde o início do século XIX, mas foi ainda mais desenvolvida e aprofundada desde então, tendo uma das contribuições relevantes valido um prémio Nobel a Paul Krugman.
Isto quer dizer que existem dois pratos na balança: por um lado a pertença a mercados comuns tem o potencial de aumentar a prosperidade, por outro lado tem o potencial para aumentar as desigualdades. Se o primeiro efeito tem um efeito poderoso e positivo sobre a qualidade de vida, o segundo tem um efeito poderoso e negativo sobre a qualidade de vida.
Assim, o debate silencioso entre quem quer manter o status quo e quem quer limitar significativamente a globalização parte deste pressuposto: não podemos ter Sol na eira e chuva no nabal. Ou prescindimos de uma fatia significativa do rendimento médio, ou aceitamos o acentuar galopante das desigualdades. Não há alternativa.
E no entanto, existe uma alternativa já testada - e com enorme sucesso - na nossa história recente: alargar a Democracia ao espaço do mercado. Foi esta a solução que promoveu um aumento acentuado da qualidade de vida após a revolução industrial e durante as décadas do pós-guerra. É esta a solução mais compatível com os ideais Universalistas e transformadores da Esquerda.
Mas existem outras razões para querer batalhar pela democratização da UE.
No texto anterior defendi que a forma da população recolher os benefícios da pertença a um mercado comum sem pagar o preço usual de aumento galopante das desigualdades é lutar por alargar o espaço da Democracia ao espaço desse mercado.
No caso concreto dos portugueses e europeus a resposta é clara: lutar por suprir o défice democrático da UE, fazendo da União Europeia um exemplo para o mundo. No que diz respeito ao comércio fora da UE, justifica-se uma política comum relativa (...) às taxas aduaneiras que promova um comércio justo e sustentável.
Mas existem outras vantagens muito importantes neste processo, por oposição ao recuo ao estado-nação que o Daniel Oliveira e outros propõem. Existem três importantíssima razões acrescidas para lutar pela democratização da União Europeia, por oposição a um presumível abandono ou à manutenção do status quo.
A 1ª vantagem tem a ver com a Paz, e falei sobre esse assunto em maior detalhe neste texto. Não é uma coincidência inesperada que a paz sem precedentes que se vive em grande parte do continente europeu aconteça precisamente no espaço geográfico e temporal da União Europeia. Quem viveu toda a sua vida em Paz tende a dá-la por garantida, mas um pouco de perspectiva histórica mostra os erros gravíssimos a que essa percepção equivocada nos pode conduzir.
A 2ª vantagem tem a ver com o meio ambiente e a luta contra as alterações climáticas. Um conjunto desagregado de países tenderá, pelo processo da «tragédia dos comuns», a fazer muito menos que o adequado para combater as alterações climáticas e enfrentar outro tipo de desafios ambientais comuns. Portugal pode abandonar os mercados comuns, mas nunca poderá abandonar a «atmosfera comum» ou o «planeta comum». Na verdade, quanto mais agregados forem os blocos políticos, mais fácil (ou melhor dizendo, menos impossível) é a humanidade estar à altura dos desafios ambientais. A razão é aquela que foi explicada no primeiro texto desta série: estamos perante um dilema do prisioneiro onde a acção concertada é a única saída. No caso dos problemas ambientais, abandonar o jogo não é uma opção. Se queremos proteger o clima, democratizar a UE é uma necessidade.
A 3ª vantagem tem a ver com a força negocial face a multinacionais e paraísos fiscais.(i.e., face ao poder do dinheiro, sem pátria nem lei). Quanto mais desagregados estiverem os estados, mais difícil será imporem condições e enfrentarem o poder das multinacionais/ transnacionais. Por outro lado, a importância económica dos paraísos fiscais cresce de ano para ano. Se os actuais blocos políticos dominantes com enormes défices democráticos (a UE e os EUA, para além dos outros...) não têm conseguido combater este flagelo - com tudo o que isso implica de injustiça e erosão do estado social - muito menos o conseguiriam estados isolados de muito menor dimensão. Se o espaço de circulação do capital aumentou significativamente, o espaço de exercício da Democracia tem de acompanhar o passo.
Sem uma verdadeira democratização dos mercados comuns (/ entidades supranacionais) a Humanidade não conseguirá estar à altura dos desafios ambientais e sociais que se apresentam.
À esquerda, foi este o comentário crítico que mais fui ouvindo a respeito da campanha do LIVRE pela democratização da UE: «Um 25 de Abril para a Europa».
O comentário parece absurdo: se a UE não tivesse problemas - e problemas graves - não faria sentido sugerir que faz falta um 25 de Abril. A ideia fundamental da campanha passa por assumir que, tal como Portugal no dia 24 de Abril de 1974, existe um gravíssimo défice democrático, e tem de se fazer algo a esse respeito.
Claro que quando muitos pensam nos problemas da UE, o défice democrático não é o primeiro que lhes ocorre. É mais fácil pensar no como as instituições europeias promoveram a austeridade, em como a abertura dos mercados aumentou a pressão sobre o estado social, em como a extrema direita está a ganhar força em vários países, por vezes depois da população se desiludir com os fracassos da «terceira via» (neoliberalizante).
No entanto, para a maioria dos portugueses, a opressão política não era o pior aspecto do regime do "estado novo" (salazarista/fascista). A fome, as desigualdades, a inexistência de um estado social, a guerra colonial, essas sim eram as agruras sentidas pela maioria dos portugueses.
Mas aquilo que o dia 25 de Abril trouxe foi a Democracia, e a Democracia por sua vez orientou os recursos e vontades disponíveis de forma a atacar os problemas vividos e sentidos pela maioria da população. Resolver o défice democrático da UE é atacar os problemas pela raiz.
É portanto com esta nota positiva, muito orgulhoso por fazer parte desta campanha, que encerro a série de textos sobre Esquerda e Europeísmo (I, II, III, IV). Há uma luz ao fundo do túnel, e vale a pena lutar por uma Europa diferente, uma Europa que seja um espaço de paz, solidariedade, desenvolvimento, qualidade de vida, sustentabilidade ambiental, equidade e democracia. Lutando por esta última, é possível conquistar as restantes.