Quarta-feira, 25.06.14

Decorreu já algum tempo que este texto de José Gil (filósofo) aqui foi postado por mim.

Contudo considerei que estava na altura de ser relembrada, repensada e analisada em simultaneo com a postagem que irei fazer seguidamente duma entrevista a Kevin Dutton de Nicolau Ferreira e saída no Jornal Público...

 

“Há pelo menos uma década e meia está a ser planeada e experimentada quer a nível do nosso país, quer na Europa e no mundo uma nova ditadura - não tem armas, não tem aparência de assalto, não tem bombas, mas tem terror e opressão e domesticação social e se deixarmos andar, é também um golpe de estado e terá um só partido e um só governo - ditadura psicológica.
Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.
O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu. O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho. O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stress, depressões, patologias, border-line, enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens)
O presente não é uma dimensão abstracta do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direcções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público. Actualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais.
O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade efectiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil. Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espectral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.
Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português.
Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria­-nos do nosso poder de acção. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país."



Publicado por [FV] às 10:50 | link do post | comentar | comentários (1)

Quinta-feira, 21.02.13

Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspetivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.

O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu.

O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho.

O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stresse, depressões, patologias borderline enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).

O presente não é uma dimensão abstrata do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público.

Atualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade efetiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.

Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espetral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.

Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de ação. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país.

Por José Gil, na Revista Visão



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