Domingo, 27.07.14

O Relógio dos Médicos   (-por Raquel Varela, 8/7/2014, 5dias)

    Eu tenho um médico de família. Gosto dele. Não gostava do anterior. Era mal-encarado, tinha ar de quem tinha acabado de ler uma peça do Ibsen e queria que eu sofresse com ele. Pedi para mudar, “incompatibilidades literárias”, expliquei na secretaria. Já lá vão uns anos tenho outro médico. Vejo-o pouco. Mas quando preciso, com voz paciente, atende-me. Rápido, muito rápido, é um entra e sai de gente a tarde toda no gabinete dele, velhos, novos, com crianças ao colo.

    A Organização Mundial de Saúde diz que os médicos têm 15 minutos para ver cada paciente, e como têm 1800 doentes – leram bem, 1800 – sob a sua responsabilidade, 15 minutos é uma fartança. Dizia eu que gosto muito do meu médico de família, desde logo porque faço parte dos seus 1800 filhos, somos uma grande família. E por isso até já lhe ofereci prendas – a última, e creio que até hoje a mais valiosa, foram uns morangos biológicos, vinha a comê-los quando entrei no gabinete dele. Comentámos a correr que “o sabor era incomparável”, disse mal dos pesticidas da Monsanto e ele comentou apressadamente “que delícia, são mesmo bons, mesmo como antigamente”…mas, ops, já tinham passado 5 minutos. Disse-lhe ao que vinha.   Ele viu, preencheu qualquer coisa no computador, estávamos já nos 13 minutos, o relógio da OMS sempre a contar…

    Se a nova lei for para a frente, contra a qual dias 8 e 9 os médicos fazem greve, os meus morangos porventura são proibidos, considerados uma prenda. Para que não se diga o que todos sabemos  pretendem ainda calar a voz dos médicos, que denunciam a erosão dos serviços, com uma lei da rolha. O Serviço Nacional de Saúde sustenta 30% do financiamento dos hospitais privados – Espírito Santo, Mello, Millennium BCP -, tudo nome de instituições a que associamos imediatamente pessoas especializadas em tratar-nos da saúde.    E são estes os números oficiais, que estão muito aquém da realidade, porque jamais os privados vão pagar a formação dos médicos (12 a 14 anos de formação, pagas pelos contribuintes públicos). Ou seja, com força de trabalho formada, mais de 50% do dinheiro de facto que entra nesses hospitais privados vem do nosso Serviço Nacional de Saúde/Orçamento Público. Dito de outra forma, há muito que os hospitais privados tinham ido à falência se não fossem despudoradamente sustentados por dinheiros públicos. E os meus moranguinhos é que são uma prenda?



Publicado por Xa2 às 08:01 | link do post | comentar | comentários (1)

Domingo, 20.12.09

Quando vim estudar para o então Instituto Superior de Economia, em Lisboa, fiquei alojado na Residência Universitária Ribeiro Santos, que por pertencer à Universidade Clássica de Lisboa e se situar nas imediações da Cidade Universitária contava entre os seus residentes um elevado número de estudantes de Medicina. Tinham entrado no curso sem serem sujeitos a quaisquer restrições ou processo de avaliação, dependiam na sua maioria dos apoios sociais sem os quais seria impossível estarem na Faculdade de Medicina.

Não sei quem serão hoje os estudantes daquela residência universitária, há uns anos atrás soube que nenhum estudante de medicina de Lisboa tinha pedido apoios sociais e, como se sabe, ainda são muitos os que vão estudar à sua custa para universidades estrangeiras. Esses estudantes de medicina foram a última geração de médicos formados antes da saúde ter sido transformado num mercado onde a oferta de médicos é controlada de forma a ser inferior à procura.

Não me admirei, portanto, que as associações de estudantes se tenham manifestado contra a criação de mais um curso de medicina, seguindo as posições da Ordem dos Médicos. Como não podia deixar de ser, o argumento foi o mesmo de todas as corporações, os nossos pirralhos estão preocupados com a qualidade da saúde, e eles que o que mais desejam é praticar medicina privada na capital defendem que o problema de Portugal não são médicos a menos, estão é concentrados no litoral.

Esta preocupação dos grupos corporativos no momento de defenderem os seus interesses é típico das nossas corporações, nenhum destes grupos evidenciam preocupações com o seu próprio bem-estar, todos se manifestam muito preocupados com os problemas do país e do povo. Os médicos estão empenhados no SNS, os magistrados na justiça, os professores na qualidade do ensino, os polícias na segurança, etc., etc., o problema é que por mais recursos que o país invista nestes sectores não se sentem grande evolução.

É um argumento falso, mesmo em cidades como Lisboa há dificuldades de acesso à medicina, Há dezenas de milhares de cidadãos sem médico de família, há filas para marcações de consulta. A preocupação com a qualidade dos cursos, resultante da dispersão das escolas, também é falsa, se assim não fosse questionavam a qualidade da formação dos médicos vindos de fora da União Europeia, mas esses não incomodam, vão trabalhar para onde os médicos portugueses não vão, nunca lhe farão concorrência nas especialidades mais lucrativas ou no mercado privado da medicina.

Igualmente falso é a teoria segundo a qual o problema resulta da concentração de médicos em Lisboa, mesmo na capital quem não tiver dinheiro para recorrer à medicina privada sujeita-se a uma via sacra de filas de espera para inscrições e marcações de consultas, a regra é a espera e, se o problema de saúde não for grave, a desistência.

Nunca percebi a razão porque a medicina é a única profissão onde não pode haver excesso de profissionais, onde parece que a qualidade se assegura pela escassez de médicos. Em todas as profissões há competentes e incompetentes por mais exigentes que sejam as universidades, passados uns tempos ninguém sabe quais são os engenheiros ou os juristas incompetentes, mas parece que na medicina encontraram uma solução milagrosa, parece que se assegura a competência dos médicos garantindo a sua escassez.

É mais um exemplo de como as nossas corporações defendem os seus interesses à custa dos do país e dos portugueses, dos que pagam os impostos para se formarem e viverem com regalias a que o cidadão comum não pode nem ousa aspirar. No caso da medicina até já são os pirralhos que, sentindo-se num estatuto de privilégio, acham que podem exigir que nada mude para que o seu sucesso seja tão fácil como os seus antecessores. Querem gerir o mercado da medicina da mesma forma que a OPEP gere o mercado do crude, quanto maior for a escassez, maior será o preço, os portugueses que se lixem, esses servem para pagar os impostos com que se financiam as faculdades de medicina e pagarem montantes absurdos por consultas da medicina priva, se não quiserem ir para as filas dos centros de saúde onde são tratados como gado. [O Jumento]


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Quinta-feira, 17.12.09

Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, a criação de um novo curso de Medicina, na Universidade de Aveiro, é uma "grande asneira" e "não devia acontecer" pois "há faculdades de Medicina que chegam e sobram".

Já dissera o mesmo quando foi anunciada a Faculdade de Medicina do Algarve e di-lo sempre que são abertas mais vagas nos cursos de Medicina. Mais médicos significa mais concorrência, e isso assusta a Ordem, para quem há médicos "que chegam e sobram", assim logrando a proeza de se pôr ao mesmo tempo contra Hipócrates e Adam Smith. Para a Ordem dos Médicos, o SNS anda a contratar médicos espanhóis, cubanos, argentinos, uruguaios, etc. não por necessidade, mas por cosmopolitismo. E as povoações do interior queixam-se de não terem médicos de família só por serem queixinhas. Do mesmo modo, os duplos e triplos empregos comuns na classe serão apenas "hóbis". É natural que Pedro Nunes se preocupe com a lei da oferta e da procura e pense justificadamente que mais oferta de médicos fará baixar o preço dos actos médicos. Mas não poderia pensar também um pouco na saúde dos portugueses?

[Jornal de Notícias, Manuel António Pina]


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Publicado por JL às 00:02 | link do post | comentar | comentários (4)

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