Treta da semana: a sandes pública. (-por Ktreta, 31/8/2014)
Uns jovens “activistas” decidiram criar um “movimento solidário”. «Pegando no Conceito dos "Banhos Públicos" e dando-lhe alguma utilidade Social surge então as "Sandes Públicas", a ideia é simples: Prepara uma sandes e oferece-a alguém cheio de apetite!»(1). Por “alguém cheio de apetite” querem dizer alguém cuja miséria seja tão grande que não tem que comer ou onde dormir e por “utilidade Social” querem dizer fazer um vídeo mostrando como são bonzinhos e dão sandes aos sem-abrigo. Uma sandes, mais precisamente, porque depois nomeiam outros para que façam o mesmo e propaguem o movimento solidário de mostrar os sem-abrigo no YouTube a receber sandes. Na entrevista, salientam que o que os move não é a fama, apesar de mencionarem com orgulho os milhares de fãs e visualizações. O que lhes importa é «o sentimento do dever cumprido»(2). No meio desta aberração toda, até é isso que mais me preocupa.
O problema já é antigo e nunca se deveu à falta de solidariedade, porque quem tem muito facilmente diz ter pena de quem não tem nada. O problema foi sempre a má distribuição (da riqueza/ rendimento, e das crescentes e absurdas desigualdades). Como já dizia António Aleixo:
O pão que sobra à riqueza, distribuído pela razão, matava a fome à pobreza e ainda sobrava pão. Antes que mais jovens activistas se precipitem, saliento que não se trata de uma exortação à distribuição de sandes. O pão do poema é metafórico. Mas o mais relevante neste poema é que não propõe distribuir por solidariedade, nem por caridade, nem por pena dos pobrezinhos. É pela razão. Ou seja, da forma justa e certa.
Se alguém é atropelado não tiramos uma foto enquanto lhe damos um penso. Queremos ambulância, hospital, médicos e que for preciso para o tratar. Mesmo que essa pessoa não tenha dinheiro e mesmo que se tenha atirado para a estrada sem olhar, é uma pessoa que sofreu um acidente e todos temos o dever de lhe garantir auxílio. Por isso pagamos para que se construa hospitais, para que se contrate médicos e para que se preste cuidados de saúde a quem precisar. Não é por solidariedade (e muito menos por caridadezinha ou por fama). É por dever.
Se alguém estiver a ser espancado na rua não o entrevistamos enquanto lhe damos uma palavra de coragem. Exigimos polícia, justiça e o que for preciso para que haja segurança nas ruas. E, para isso, pagamos esquadras, polícias e juízes. Não é por pena dos espancados. É por obrigação. É também o que fazemos com os passeios, as estradas, os jardins e a iluminação pública, e também com os esgotos, as escolas e as campanhas de vacinação. Não é por caridade mas por ser a forma correcta de resolver os problemas importantes. Todos devem fazer o mesmo sacrifício para que todos beneficiem por igual daquilo a que todos têm direito (como cidadãos e HUMANOS).
Também não está certo que quem passa fome e dorme ao relento leve uma sandes e seja filmado para o YouTube. É preciso garantir-lhe um rendimento que dê condições mínimas para viver. Para que tenha onde dormir, onde fazer as necessidades e tratar da higiene, onde possa guardar as suas coisas e para que possa comer condignamente. E não é por ser um coitadinho, nem tão pouco importa se é pobre porque teve azar ou porque é preguiçoso ou doente. É uma pessoa e uma pessoa não merece viver assim. Ninguém tem o direito ao «sentimento do dever cumprido» enquanto este problema não se resolver e é asneira achar que esta caridadezinha é inofensiva. É como tratar um tumor no cérebro com aspirina. Medido pelo sofrimento que causa, este é o maior problema de Portugal e temos de o levar a sério.
Por isso aqui vai o meu desafio. Arrumem a máquina de filmar e enfiem a sandes onde quiserem que isto não precisa de adereços. Eu apoio quem implementar um rendimento incondicional garantido em Portugal e aceito que me aumentem os impostos o que for preciso para o conseguir. Agora nomeio toda a gente que diga importar-se com a pobreza a comprovar com a carteira o que dizem de boca e fazer o mesmo. Não é para dar uma sandes ou 20€. É para dar o que for preciso, todos os meses e a vida toda para resolver isto de vez, que já é altura. E não é por caridade, nem por solidariedade nem por pena. É pela razão.
links: http://www.rendimentobasico.pt. 1- FB, Sandes Públicas 2- SIC, "Sandes Públicas" são uma causa solidária.
--------- * - Agora está na moda o 'voluntariado' e "fazer 'coisas' em público", filmá-las ou fotográ-las e colocá-las na internet ou divulgá-las por telemovel, FB, ... para ter muitos 'seguidores'/ 'amigos'/ fãs/ 'likes', ... e depois 'nomear' conhecidos para fazerem o mesmo ... (e "não quebrar a corrente") e isto tanto serve para situações/eventos de assédio, 'bulha' entre raparigas, um murro a desconhecidos, ... como um banho de água fria/gelada, ... ou 1 sandes !!! e são estes os grandes objectivos e modelos sociais ...
--- ver tb: O charme discreto da caridade / Cidadania e solidariedade (-R.Namorado, 25/12/2014)
--- A ajuda humanitária e os seus mistérios (-por V. Dias, 22/1/2015, o tempo das cerejas2)