Quando rebentou o escândalo sobre a vergonhosa recolha que a NSA faz de dados de todos (americanos e não americanos), e do polvo que montou para aceder, sem quaisquer restrições, aos dados de qualquer pessoa, sem ter de pedir autorização a um tribunal, muitos foram os que vieram (e continuam a vir) com o argumento do "quem não deve, não teme". Isto é algo com que me tenho deparado muito, ultimamente. As pessoas não se importam que lhes chafurdem os dados pessoais, os mails, os documentos que têm alojados em servidores, as chamadas telefónicas, tudo, que lhes esmiúcem a vida porque, lá está, quem não deve não teme.
Este argumento é perigoso. Por vários motivos. O primeiro dos quais tem a ver com a incorrecção da coisa. Quem não deve. Todos devemos. À luz da mente retorcida de alguns terceiros, todos nós, em algum momento da vida fizemos (ou havemos de fazer), coisas que não devemos. Portanto, todos temos de temer. (e todos devemos COMBATER )
E é aqui que começo a contar a tal história que prometi ao princípio.
Sabem qual foi o país ocidental onde mais judeus foram mortos, durante a 2ª guerra mundial? Proporcionalmente falando (número total da população, versus número de judeus que faziam parte dessa população). Foi a Holanda. Quem diria, a Holanda, um país conhecido há muito pela sua abertura e tolerância.
Agora vamos aos porquês. Os holandeses são, e sempre foram, um povinho muito organizado. Gostam de ter tudo no sítio. Tinham uma base de dados extensa e muito completa, por via dos censos regulares, dos hábitos do seu povo. Religião incluída. Quando os nazis ocuparam aquela merda, e os reis zarparam para Inglaterra, a única coisa que foi preciso, foi ir ao arquivo do instituto nacional de estatística lá do sítio, pegar no último censos, e ir à cata dos judeus, cuja religião estava bem assinalada nos formulários.
Resultado? 90% (e é uma estimativa conservadora) da população de judeus foi dizimada. Repito, é a maior taxa de morte de população de judeus durante a 2ª guerra mundial, por país.
Porquê? Porque a informação estava lá. Fácil de encontrar e de recolher.
Teriam os judeus razões para temer? Não, mas deviam, aparentemente.
Se calhar estas pessoas também achavam que, quem não deve, não teme. E por isso não tiveram problemas em prestar informação acerca de tudo e um par de botas. E depois lixaram-se, Com f de cama.
Na era em que vivemos a recolha e concentração de informação é cada vez mais fácil. Há apps para isso. Disponibilizamos informação às vezes sem nos apercebermos disso, e fomos ensinados a desvalorizar. Mais, disponibilizar informação pessoal, é até um hobby. Pior, a fronteira entre o que é pessoal e o que não é pessoal deixou de ser clara.
As gerações mais novas já integraram a palavra "partilhar" no seu ADN. E não deviam.
A recolha de informação pessoal, mesmo que seja pelos motivos mais límpidos do mundo, deve ser SEMPRE recusada e combatida. Porque, por mais puros que sejam os motivos dessa recolha, a informação fica lá, disponível, para que pessoas, organizações, movimentos, empresas, instituições, governos, eminências pardas e outros que tal possam aceder-lhe, e dar-lhes o uso que muito bem entendam.
Para finalizar. Informação pessoal não são apenas os nossos dados bancários, ou o nosso historial clínico. Informação pessoal são os nossos gostos (os likes no facebook são um bom exemplo da facilidade com que disponibilizamos informação pessoal), onde estamos (georreferenciação), por onde andamos, as nossas fotos, os nossos vídeos, as nossas posses, os nossos medos.
Brevemente, outro post sobre o tema, desta vez para desmontar o argumento "sou tão insignificante que ninguém se interessa pelas minhas coisas, portanto, ninguém vai espreitar".
Acordem, porra.
O Estado enquanto criminoso (-por R.Alves, Esquerda Republicana) O Diário de Notícias da passada quarta-feira (4/6/2014) anunciou tranquilamente que o SIS e o SIED (departamentos do Estado, recorde-se) têm um «Manual de Procedimentos» que recomenda que se recolham informações, sem mandado judicial, junto das Finanças, de bancos, de seguradoras e de empresas de telecomunicações. Portanto: há serviços de Estado que têm um manual que recomenda como praticar crimes.
O «Manual...» não tem nada de teórico, como já foi demonstrado pelo «caso Silva Carvalho», em que houve acesso ilegal a dados de operações de telecomunicações, acesso que aguarda sanção em julgamento.
O DN acrescenta que o actual director do SIRP (Júlio Pereira), e os dois anteriores directores do SIS (Margarida Blasco e Antero Luís), não negam que existe um manual de incitamento ao crime nesses serviços do Estado que dirigiram. Terão mesmo parte ou totalidade do manual dos criminosos estatais.
Estranho em tudo isto é que a Procuradoria Geral da República nada tenha feito, já dois dias passados. É que quando não há justiça nos tribunais, a revolta pode exprimir-se de forma mais primária. Por exemplo, pendurando os novos pides nos candeeiros das avenidas.