Há palavras que deviam queimar os lábios de quem as profere, palavras que, em vez de esclarecer, escondem, e não exprimem o que parece, ocultam o contrário do que dizem.
«Liberdade de escolha» não é um pensamento, é uma armadilha; não é um programa, é uma habilidade; não é liberdade e, muito menos, escolha. É mero slogan para capturar o ensino público, privatizar a saúde e engolir a segurança social, na insaciável voragem de seguradoras, bancos e outras empresas privadas. É uma forma capciosa de espoliação do que é de todos, através do Estado, para todos dependermos apenas de alguns.
A sofreguidão com que o setor privado engole a saúde, com ganho do setor dito social, num ato de caridade que confisca pessoas, bens e a liberdade, devia ser alvo da reflexão dos portugueses.
O bando ultraliberal que escondeu a agenda perversa que levou para o Governo, à boleia do PR, que o protege, devia ter-nos posto de sobreaviso. Há uma metódica transferência dos hospitais para grupos privados enquanto, à sorrelfa, o setor social (ligado à igreja), insaciável, e com pias intenções vai refazendo o império da caridade; quanto à instrução, já estão preditos os cheques de ensino com que se desmantela o ensino público, laico e igualitário, para aniquilar a coeducação e instaurar o carácter confessional; se ainda houver tempo, ficam os alicerces da transferência da segurança social para as companhias de seguros.
A República, perdido o feriado, que lembrava a identidade do regime, uma vez por ano, foi deixada à mercê de grupos privados enquanto o Governo mais inapto de sempre, não podendo fazer pior, fez o melhor que pôde a entregar o nosso destino coletivo nas mãos dos patrões a quem obedece servilmente.
A democracia, esvaziada, ficará à mercê de aventureiros, quando formos expulsos da União Europeia ou esta, no seu estertor, fique a aguardar a certidão de óbito.
A Constituição da República, inviabilizada pelo bando que a odeia, será substituída por um arremedo que consagrará a «liberdade de escolha» a quem a possa pagar.
O espólio de uma democracia, que nasceu para a felicidade de um povo, será dividido entre os abutres do capital financeiro e a gula das instituições pias. E nós deixamos !
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Esta imagem, criada para o mais recente número da revista Rubra, é uma imagem que, como outras, vale por mil palavras.
A luta política é também luta de ideias, e não só de organizações ou movimentos. Uma das ideias mais fortes criadas pela fase de desenvolvimento capitalista nas últimas três décadas foi a ideia do «fim do trabalho» ou, pior, a ideia de que as classes sociais (com subclasses de rendimento ou de status) tinham desaparecido e seríamos hoje todos indivíduos, pequenos empresários, empresários em nome individual, empreendedores.
Verifica-se que a realidade é, porém, outra. Nunca em Portugal houve tanta população activa e tanta gente que vive do trabalho. A população no sector industrial mantém-se aliás praticamente estável nas últimas quatro décadas. Mas quem vive do trabalho é hoje diferente do operário de fato-macaco azul. Há, por exemplo, uma «fábrica» de centenas de milhares de pessoas a trabalhar sozinhas em casa num regime de trabalho à peça (recibo verde) do século XIX: jornalistas, arquitectos, investigadores, costureiras, editores, revisores, gestores, designers, informáticos, um sem fim de profissões. A produtividade aumentou, porque a formação e a educação aumentaram também (temos 1,3 milhão de licenciados e 30 000 doutorados) e porque se introduziu tecnologia maciçamente – isso faz as pessoas mais heterogéneas mas não faz que deixem de ter em comum o facto de viverem do trabalho, serem trabalhadores. Ninguém pode afirmar, por este critério, que um médico, um professor, um montador de automóveis, uma cabeleireira, um trabalhador de call center e um investigador não têm em comum o facto de viverem do trabalho e não de renda, juro ou lucro.
Do ponto de vista das classes sociais – de que muitos apregoaram o fim, omitindo que o que se passou foi uma complexificação dessas classes mas não o seu desaparecimento – a sociedade divide-se efectivamente, com alguns híbridos pelo meio (incluindo os administradores, dirigentes de topo), entre quem vive do trabalho (a sua principal fonte de rendimento é o salário de dependente ou a 'venda' de tarefa/serviço como 'independente') e quem vive de juro, lucro ou renda (e dividendos). Os próprios governos nacionais fazem contas oficiais, nomeadamente para a recolha de impostos (IRS versus IRC, ...), com base nesta divisão. Fazem também contas à governabilidade com base nesta divisão, tentando criar a imagem de que um estivador e um enfermeiro são duas categorias que nada têm a ver uma com a outra. Quantas vezes este discurso vem agarrado à ideia de que quem conservou direitos é «privilegiado»? Porque numa sociedade onde há 25% de desempregados, um salário e uma reforma de miséria aparecem como uma sorte.
Com as políticas executadas desde 2008 vivemos aquele que é historicamente o maior processo de proletarização de Portugal. Maior do que aquele que se verifica no século XIX com a privatização da propriedade, maior do que aquele que se dá nos anos 60 do século XX com a mecanização agrícola, que expulsou para as cidades e para fora do país milhares de camponeses e assalariados agrícolas.
Cada vez mais pessoas têm a sua força de trabalho (mental e física) para vender e só têm isso para garantir a sua sobrevivência, nada mais. Perdeu-se a ligação da maioria à terra (que dava, ainda que pouca, alguma independência); muitos escritórios de advogados, médicos, dentistas deixaram de ser trabalhadores independentes para passarem a estar dependentes de uma empresa ou de um conglomerado. Nasceram como cogumelos cadeias de supermercados, cabeleireiros, oficinas de automóveis e restaurantes que arrasaram a chamada empresa familiar.
Esta é uma imagem feliz porque ela interpreta o novo com história. E remete não só para a união entre trabalhadores manuais e intelectuais como de alguma forma representa a transição histórica que vivemos– para já com escassa resistência – que tende a anular o trabalho com direitos e a generalizar a precarização. Não devíamos caminhar sós…
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