... Ser de direita é o refúgio natural das mentes preguiçosas. À direita não se discute, não se teoriza, não se reflecte, não se elabora pensamento. Isso das teorias, das doutrinas, das ideologias, é tudo uma grande treta com que só a esquerda perde tempo.
A direita é pragmática: os factos estão à vista, o diagnóstico está feito, discutir não passa de conversa fiada. O que é preciso é fazer, seja o que for, em regime de meia bola e força, da forma que seja mais fácil e, já agora, que seja também baratinha, ou torne tudo mais baratinho para todos.
Naturalmente, os factos apurados por esta política do barato são-no sempre de forma técnica e asséptica, redutível a gráficos simplistas à la Medina Carreira, sem que qualquer «preconceito ideológico» turve a visão ao analista; evidentemente, o diagnóstico que a política barata extrai dos dados que mobiliza é ele também tudo menos uma interpretação em que participem categorias valorativas de quem analisa, mas antes a própria expressão do bom senso, a constatação do óbvio, a reconstituição de uma linha lógica que se mete pelos olhos dentro; indiscutivelmente, as soluções apontadas são inevitáveis, as que têm de ser, não há alternativas, e quem diz o contrário ou mente com despudor ou não percebe que «o mundo» funciona «assim».
É escusado dizer-se que, por inexplicável coincidência, a aplicação prática deste pragmatismo todo, recai sempre sobre os mesmos. Por estranha maquinação do destino, quando a direita é pragmática, nunca os banqueiros empobrecem, nem o patronato perde lucros, nem os salários aumentam, nem – supremo objectivo – os impostos chegam a descer. O pragmatismo, filho de uma visão asséptica e neutra e isenta e imparcial, tem sempre a malvadez de ir ao bolso de quem trabalha, de fazer falir micro-empresas, de encurtar pensões e reformas, de gerar desempregados e – ó surpresa das surpresas! – beneficiar milionários, seja criando novos, seja aumentando os proventos dos que já existiam. Para coisa que não foi premeditada para beneficiar uns contra outros, para coisa que não é pensada contra uns em favor de outros, a coisa não está mal. O que me faz dizer, a mim que nem sou religioso, que Deus me livre de viver num sítio em que esta gente realmente se meta a discutir e a delinear planificadamente uma forma de beneficiar os ricos, deixando de lado a isenta seriedade que a caracteriza!
Com efeito, bem sei, a repercussão que as ideias das H.M. que por aí andam, possa ter sobre quem menos tem, é a última coisa a preocupar os blasfemos. Merece-lhes um encolher de ombros, um «é a vida». Aos mais dados a empregar palavreado da moda, julgando com isso dizer coisa que expresse a sua sofisticação e sapiência, ouviríamos talvez um «é o mercado a funcionar». Já dos ainda assim dados, mau grado tudo, a sensibilidades serôdias ou hipocrisias de deputados em funções nas bancadas da direita ou a elas candidatos mais cedo ou mais tarde, talvez escutássemos um «são sacrifícios no presente para garantir melhorias no futuro». Mudam os termos, não mudam os conteúdos: a direita que há 40 anos encolhia os ombros porque a pobreza «é a vontade de Deus» ou quando muito a classificava como o caminho para um lugar no Céu, encontrou na linguagem da economia mainstream (aquela que já não se chama economia política mas que o é como provavelmente nunca o foi) a nova vulgata para um credo com funções idênticas. Ao povo já não se dá ópio, dá-se-lhe o «Negócios da Semana».
E afinal de contas - e deixo isto à consideração dos demais ...-, para quê a preocupação com o povo? H.M. acusa-nos de «comunismo de sociedade recreativa» e consigo vê-la, vê-la literalmente, à porta da sede de uma sociedade desse tipo, vendo os homens lá dentro a jogar às cartas, a beber finos, a vozear, a dizer palavrões, com uns dentes muito sujos, umas panças muito salientes, alguns mesmo de fato de treino, as mulheres naturalmente de bata e a discutir a novela de ontem. Que lugar horrível aquele! A frágil H. estremece no alto do seu stiletto, sente-se mareada, cambaleia, enfia-se no carrinho, e acelera a toda a brida para bem longe de lugar tão feio! Quereremos nós, confrades do 5 Dias, realmente defender gente de tão baixa extracção, que não lê livros nem vai ao teatro, que come com as mãos, gente que se coça?
Aparentemente, queremos. Aparentemente, não dizemos «é a vida» quando sabemos que esta gente é despedida. Não dizemos «é o mercado» quando esta gente fica sem casa. Não dizemos «saiam da vossa zona de conforto» aos filhos deles que não têm emprego. Não consideramos «reduzir o peso do Estado» privá-los de centros de saúde, escolas, repartições, subsídio de desemprego, baixa médica, trabalho com direitos. Vamos –pasme-se!– ao ponto de defender que alguns tenham RSI. Vamos –imagine-se!– ao ponto de considerar que devem ser a classe dominante. Vamos –mas seremos bons da cabeça?!– ao ponto de não engolir a conversa «pragmática», o «diagnóstico» escorreito, as «soluções inevitáveis» que esta gente nos tenta impingir, matraqueadamente, todos os dias. E discutimos como isso se faz, sim. Mas acima de tudo unimo-nos para o fazer. E a mesma H. que procura, em vão, ver nas discussões que por aqui nasceram a prova de que não o faremos com a mesma força, é a H. que nos verá, na luta concreta por cada uma destas coisas, unidos como os dedos da mão.